Quando as recomendações deontológicas parecem apenas palavras no papel, e as informações jornalísticas não passam de mercadoria, as práticas que envolvem a profissão tornam-se perecíveis. O imediatismo desenfreado, característico dos meios digitais, está atropelando técnicas, critérios e regras essenciais na construção das informações. Essas características estão se espalhando para as diferentes plataformas jornalísticas. Em meio a um verdadeiro vale-tudo, a credibilidade jornalística está sendo sepultada junto com os fundamentos basilares construídos ao longo do tempo. Ao abrirmos mão das regras e procedimentos próprios do jornalismo, perdemos de vista a função social da atividade que passa a ser meramente mecânica e industrial.
Alguns críticos poderão dizer que as informações jornalísticas sempre foram perecíveis, entretanto, essa lógica está cada vez mais acelerada. A significativa diminuição de tempo para seleção, apuração e produção dos conteúdos não afeta somente a qualidade das informações, mas também, as ações técnicas envolvidas nesse processo. Esse cenário enaltece o papel da ética relacionado à reflexão sobre ás práticas jornalísticas. “Trata-se da interrogação sobre o comportamento humano e seus desdobramentos, que variam segundo tempo, lugar, circunstâncias e obstáculos. Diz-se que a ética é a interrogadora da deontologia e coloca essa permanentemente sob julgamento” (KARAM, 2009, p.130). A ação de interrogar o código moral das regras e procedimentos relacionados ao jornalismo, mais do que um dever, se apresenta como uma necessidade para superarmos as problemáticas do contexto atual.
Não podemos encarar o jornalismo como um sistema fechado que não admite qualquer tipo de refutação. Também não se trata, apenas, da aplicação de restrições e limitações, adaptação de regras ou aconselhamento. O jornalismo precisa avançar de forma consistente e duradoura. Para além dos discursos, precisamos edificar pontes entre a teoria e a prática, romper o isolamento do conhecimento e das pesquisas acadêmicas em relação às ações cotidianas do campo jornalístico. Mais do que nunca, precisamos de um entendimento, norteado por uma compreensão mútua, que vise o aprimoramento das atividades que perpassam a profissão.
Cada vez mais, o ato de informar se caracteriza pelo seu viés privado, e consequentemente, a finalidade das informações atende a interesses particulares e altamente perecíveis. Esse quadro dá origem aos questionamentos sobre a relevância do jornalismo na sociedade, pois, evidentemente os seus fins sociais, enaltecidos por Cornu, desapareceram das informações jornalísticas. “O acto de informar, tal como é praticado pelos jornalistas, não pertence às relações individuais, de pessoa a pessoa. É uma acto social que se desenrola num espaço público, num território que é também o do político” (1999, p.132). A liberdade e a autonomia do jornalista, como sujeito moral, é inútil se estiver desvinculada do espaço e dos interesses públicos.
A conjugação da atividade de pesquisa, especialmente relacionada à análise do campo jornalístico, e às ações cotidianas dos profissionais tem o potencial de reaproximar a atividade jornalística das verdadeiras necessidades sociais. Assim como os métodos empregados pelos profissionais são pertinentes para o entendimento e o desenvolvimento dos estudos que, de uma forma geral, pretendem propiciar o avanço progressivo do entendimento do jornalismo como uma atividade social e não apenas como um negócio.
Redescobrir o jornalismo
As lições apresentadas pelo tempo demonstram que o valor do jornalismo está contido no espaço ético da veracidade, da pluralidade de versões, da proposição de debates e do esclarecimento. Na prática esses são desafios permanentes conexos ao exercício dessa atividade. Conforme Maciá-Barber, a evolução dos aparatos tecnológicos não pode suplantar as competências dos jornalistas, particularmente, relacionadas ao monitoramento diário do direito à informação dos cidadãos e o cumprimento de princípios ligados ao rigor e à veracidade. “Estas exigências não se alteram pelo simples facto de as tecnologias mudarem os suportes físicos que veiculam a informação” (2014, p.84). Um momento de metamorfose não pode se tornar um álibi para que essas características deixem de orientar a práxis jornalística, nem para ocasionar a substituição por outras formas de valoração.
A falta de um entendimento claro dos critérios adotados, atualmente, é evidenciada pela confusão entre o que se configura como informação e o que se reporta à opinião, o que é apresentado como fato e o que é uma tentativa de convencimento. O conteúdo majoritariamente apresentado, especialmente pelos veículos de comunicação tradicionais, se orienta por uma inversão drástica da ética, onde a característica perecível das informações reflete-se também em uma moral efêmera impregnada de interesses, onde julgamentos são apresentados em detrimento de fatos concretos. A descaracterização das informações passa pela utilização de critérios claramente ideológicos e tendenciosos transvestidos de neutralidade.
No jornalismo perecível, o conflito de interesses e o debate abrem espaço para uma visão parcial e limitada dos acontecimentos; o tratamento das informações é instrumentalizado e se aproxima da alienação e da manipulação. A informação pública beira a especulação e a opinião privada se confunde com o interesse público, em última instância o jornalismo se transforma em interesse empresarial. A notícia se esvazia, perde profundidade e contextualização, os jornalistas abrem mão dos parâmetros da responsabilidade e cedem às pressões tornando-se verdadeiros porta-vozes dos ideais de empresários do ramo da comunicação.
A superação desses problemas não está atrelada a uma questão de consumo mais de significado, a importância do jornalismo passa pelo fortalecimento dos princípios que estão na sua essência: relevância social, precisão, verossimilhança e credibilidade. O processo de consolidação do ambiente virtual não implica o apagamento da história, o momento de transformações e adequação, propiciado pelas novas ferramentas, poderá gerar avanços ou retrocessos no ato de informar e interpretar a realidade. “Assistimos, sem dúvida, a um tempo de transformações tecnológicas que coincidem com uma profunda crise económica e com uma mutação do modelo de negócio dos media, factores estes que têm incidência na deontologia profissional” (Maciá-Barber, 2014, p.84). Um olhar mais atento irá indicar que as soluções para o jornalismo estão relacionadas à redescoberta dos princípios jornalísticos.
A mudança de contexto sugere um conjunto de tendências que têm bastante impacto no modo de concepção, organização e no trabalho jornalístico. Estamos diante de uma oportunidade de aprofundar o entendimento e melhorar as nossas ações sanando certos desvios individuais e fortalecendo a cultura e as práticas coletivas. A incidência de infrações reiteradas baseadas em uma visão orientada pelo lucro impõe uma reflexão ética que ultrapasse a superficialidade e se direcione de fato às cúpulas diretivas das empresas jornalísticas. Chegou o tempo de repensarmos o quão perecível pode ser as informações para que essa tendência não afete de forma definitiva a prática e a torne perecível ao ponto de ser desnecessária para a sociedade.
Referências:
CORNU, Daniel. Jornalismo e Verdade: Para Uma Ética da Informação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
KARAM, Francisco José Castilho. Ética. In: MARCONDES FILHO. Ciro. (org). Dicionário da Comunicação. São Paulo: PAULUS, 2009.
MACIÁ-BARBER, Carlos. Novos desafios para uma deontologia jornalística duradoura: o modelo de negócio dos media face às exigências éticas e à participação cidadã. In: Comunicação e Sociedade, vol. 25, 2014, p. 83 – 96.
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Ricardo Torres é mostrando em jornalismo no POSJOR/UFSC