Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O jornalismo morreu?

Artigo de Alberto Dines publicado neste Observatório da Imprensa (‘A mídia se ilude e espera modelos mágicos‘) deixa em suspenso a possível idéia de que o jornalismo estaria, digamos assim, à beira da morte.

Ao abordar a questão da invasão da telefonia na veiculação de notícias (embora seja improvável que qualquer notícia que se preze caiba integralmente em 140 caracteres), mostra, na verdade, o poder de fogo de penetração da internet como fonte de desejo (e persuasão) na vida do público em geral. Sim, além das mensagens curtas (SMS), os telefones inteligentes também veiculam imagens de vídeo, reportagens teoricamente completas, inclusive, ao vivo, claro, tudo pela internet. Pois a telefonia é apenas um mero usuário (oportunista) da tecnologia, a world wide web, cuja artilharia viral e fomentada pela web metrics atinge quem e quando ela quiser. Quem não garante que um telefone inteligente possa ser conectado a uma tela plasma de alta definição – adeus antenas escama de peixe e parabólica.

Neste caso, é um fato, é a notícia da nossa era, você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito. Quantas matérias numa só frase, quantos ângulos numa só afirmação – temporalidade, jornal, jornalismo (duas coisas meio diferentes), leitura (hábito e costumes de uma prática que pauta o desenvolvimento da inteligência humana, até prova em contrário), texto (faculdade de escrever, em franca deterioração).

Mudou ou não mudou?

A princípio parecem perguntas banais. Mas não é a partir de perguntas banais que se começa uma bela, séria e imparcial reportagem?

Dines também nos lembra que a produção de um jornal (inferindo um jornal tradicional) é feita por uma equipe que transpira. Não vejo por que esta equipe pararia de transpirar se fosse contratada por um web site de conteúdo. A propósito, o diretor de conteúdo do iG me informou (por escrito), para meu espanto e dos patrocinadores, que o portal vai mudar radicalmente, passará a focar em informação. Ué, não focava? Os anunciantes foram avisados? Permanecerão fiéis ao veículo com a provável mudança de gabarito de leitor ‘ávido por informação’? Perguntas que não acabam mais.

Giro: em 2003, pude coordenar a visita do professor Roger Chartier ao Brasil para falar da história da leitura na Jornada Literária de Passo Fundo e sua acalorada aula sobre o assunto para mais de 7.000 pessoas sob uma lona de circo na fria cidade de Passo Fundo, para mim, ficou marcada por vários motivos, um deles a centena de vezes que ele repetiu a palavra pantalla (tela em espanhol) – pausa para o comic relief: Chartier é francês e palestrava em espanhol, no Brasil. Do tempo em que se lia (o clero) caminhando com as mãos para trás, enquanto serviçais seguravam e desenrolavam longos rolos de pergaminho, ao nosso tempo, o hábito de leitura mudou muito, mas arrastou-se de século em século, de décadas em décadas até que uma determinada mudança se instalasse definitivamente. A diferença, hoje, é que a mudança tanto do modo de ler, quanto do estímulo, tanto do veículo e do modo de escrever, quanto de outras circunstâncias que permeiam qualquer leitura de texto, é tão veloz, se instala de modo tão invasivo e persuasivo a ponto de ser muito difícil avaliar instantaneamente os demais aspectos que se a envolvem. O contexto de um jornal e do jornalismo, por exemplo. Daí o debate ser fundamental. Já. Do contrário estaríamos, sim, presenciando a morte do jornalismo, pelo menos daquele que era feito antes, e de fato jamais leremos jornais do mesmo jeito.

Queremos ler jornais do mesmo jeito que líamos antes? O Observatório da Imprensa não perguntou se queríamos, mas prometeu que não o faríamos nunca mais. E então, mudamos a maneira de ler jornais? Afinal de contas, o jornalismo mudou ou não mudou, por conta da entrada da internet no cenário das redações?

A criação do press release

O outro nó gordiano da questão é o fenômeno dos motores de busca – sejamos menos cínicos, o poderoso Google, que deflagrou (mesmo que seja uma coqueluche tecnológica) uma tendência no mínimo difícil de reverter, a da disponibilização e, consequentemente, contextualização, de notícia e informação. O professor Chartier acha que o Google dispersa dados, amontoa informação e não contextualiza. Mas seria o papel do veículo, do suporte, contextualizar? O amigo Carlos Eduardo Novaes me enviou e-mail confessando que não entendeu minha afirmação de que o Google seja ‘uma ferramenta de comunicação’. Razoável, o comentário de Novaes, mas é a minha opinião: o Google é uma ferramenta de comunicação; pode não parecer, pode não dizer que é, mas é. Voltando ao ponto da contextualização, não são os atores humanos, jornalista e leitor, os responsáveis por esse mal necessário? Ligar um ponto ao outro, intelectual, livre e espontaneamente?

Dines lembrou Harold Evans, que afirmara que o público primeiro seduz-se com opiniões e truculência, em seguida busca informação trabalhada, investigada, obtida com muita transpiração. Certo. Mas será que este mesmo leitor, que nunca mais leu jornal do mesmo jeito, continua buscando informação trabalhada? Será que ele encontraria hoje em dia? Me ocorre a lembrança de um sobrinho porra-louca de Freud, Edward L Bernays, o verdadeiro pai da arte do relações públicas. Baseado nos estudos do tio, foi o responsável (no final da década de 20) pelo começo da utilização da persuasão do público. Um de seus primeiros clientes foi a indústria do cigarro, que por sua vez (leia-se Philips Morris) financiou por mais de vinte anos não só a criação, mas a publicação do Jama, o jornal da associação americana de medicina. Não por acaso, a indústria do lobby nasceu ali, exatamente no lobby dos hotéis dos Estados Unidos. Bernays acreditava na teoria (do tio) conhecida como herd instinct (instinto de manada) e, com base nesta teoria, criou a sua própria, chamada de ‘persuasão das massas’ e organizou a Easter Parade em Nova York, convidando as mulheres a se exporem publicamente com um cigarro entre os lábios. Com isso, quebra uma barreira cultural e pavimenta a entrada das mulheres no mercado de consumo de tabaco. A revista Life considera Bernays um dos 100 mais influentes americanos do século 20. Ivy Lee, um contemporâneo de Bernays, em 1920, cria o estilo news release (NR) ou press release – uma nova modalidade de se abastecer as editorias de jornais e rádios com informações. Hoje em dia, cerca da metade das matérias veiculadas diariamente pelo Wall Street Journal são oriundas de NR. Onde está a transpiração do jornalista? Assunto para debate?

Infinitamente frágil

Depois do lobby da indústria de petróleo, a AMA (Associação Americana de Medicina) é considerada a maior lobista dos EUA. Influencia a linha editorial de jornais, revistas especializadas e não especializadas, rádio, TV, FDA, indústria de seguro, Congresso, tudo… A cada dia, a AMA envia um minuto de mensagem para 5 mil estações de rádio; a cada semana, 4 mil news release para publicações científicas. Edita o periódico mais lido pelos médicos, o Jama, com tiragem de 750 mil exemplares, ou mais. Haja transpiração. Isonomia, que isonomia?

O debate não vai parar, o jornalismo não vai morrer, não deixaremos, mas com uma coisa estaremos todos de acordo: mesmo com a tradicional gravata afrouxada, ou com o suado coletinho de guerra, o ser de carne e osso, o jornalista, é infinitamente frágil diante do roldão que forma a indústria tecnológica da internet, da telefonia, do lobby e das bolsas de valores.

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Escritor e jornalista