O caso Pegasus [1] e seus desdobramentos publicados pelo jornal britânico The Guardian mostraram como a espionagem sobre o trabalho de jornalistas investigativos deixou de ser algo esporádico para tornar-se sistemático, transformando esta modalidade da profissão numa atividade de alto risco.
A enorme repercussão alcançada pela divulgação do uso do software espião desenvolvido pela empresa israelense NSO apontou a necessidade de os jornalistas revisarem suas rotinas de trabalho. Até há pouco, a maior preocupação das instituições e indivíduos atingidos por investigações jornalísticas era intimidar e ameaçar repórteres, mas agora softwares espiões como o Pegasus focam no arquivo de informações do profissional. A ameaça física e moral, está sendo substituída pelo assédio informativo, realizado através da distorção e desinformação baseadas no próprio material colhido pelo jornalista investigativo.
A profissão foi empurrada para dentro do obscuro mundo da vigilância extrema e permanente, porque qualquer dado ou fato que chama a atenção de um jornalista pode, potencialmente, servir de pretexto para eventuais prejudicados contratarem empresas de espionagem eletrônica ou iniciarem processos judiciais milionários. O software de empresa NSO é capaz de vasculhar telefones e computadores mesmo desligados e sem que o dono perceba que foi invadido.
A era da informação, batizada assim por especialistas como James Gleick, colocou o jornalismo no centro da disputa pela commodity mais valorizada do planeta. Isto implica uma mudança qualitativa na forma como o jornalismo se insere em nossa sociedade. Até agora, profissionais e amadores do jornalismo tratavam a informação como algo sobre o qual podiam ter total controle, mas na era digital ela se tornou fluida, manipulável por outras pessoas, fora do controle do repórter.
Metade dos jornalistas investigativos americanos entrevistados numa pesquisa da Pew Center, no primeiro semestre de 2015, admitiram que não tomam qualquer medida especial de segurança, mesmo depois de Edward Snowden [2], um ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, ter revelado, em 2013, um vasto sistema global de espionagem telefônica e telemática realizado pela agência norte-americana.
Apenas 38% dos entrevistados na pesquisa adotaram medidas extras de proteção a dados colhidos durante a execução de reportagens investigativas. Entre os que mudaram sua rotina jornalística, a maioria absoluta se mostrou mais preocupada com a possibilidade de perder a confiança de fontes do que com a importância da busca de informações.
Intimidar repórteres investigativos tornou-se uma operação de baixo custo financeiro dada a quantidade e variedade de equipamentos eletrônicos disponíveis para hackear redes sociais, blogs e o correio eletrônico de jornalistas. Daí a maior frequência no chamado assédio informativo, pelo qual empresas e órgãos governamentais tentam intimidar repórteres investigativos, conforme mostra artigo acadêmico do sociólogo Silvio Waisborg, diretor da Faculdade de Mídias e Políticas Públicas, na Universidade George Washington.
Há uma enorme disparidade financeira entre os recursos aplicados por empresas e governos na produção e uso de softwares de espionagem em relação ao que é gasto por profissionais autônomos e conglomerados jornalísticos na proteção de informações obtidas através de reportagens investigativas. Esta desigualdade é uma ameaça permanente à eficácia e segurança das equipes praticantes do jornalismo investigativo, que agora foram colocadas diante de escolhas difíceis.
O jornalismo em clima de 007
Na sua tese de doutorado, o acadêmico Ricardo José Torres entrevistou repórteres investigativos e constatou que 96% deles demonstraram grande preocupação com a possibilidade de “hackers” invadirem seus telefones, redes sociais e até mesmo computadores para capturar dados considerados sensíveis. A pesquisa mostrou ainda que 50% dos entrevistados suspeitam que o governo brasileiro usa a espionagem eletrônica no monitoramento da imprensa e 20% estão seguros de que este tipo de vigilância sobre jornalistas já é praticado rotineiramente no país.
O aumento da espionagem eletrônica e da censura financeira e judicial ao jornalismo investigativo atingem o âmago da profissão. O sigilo das fontes, um dos dogmas da atividade jornalística, perde efetividade e confiabilidade na era da espionagem eletrônica. Isto muda radicalmente a relação do profissional com suas fontes de informação porque ele não pode mais garantir o anonimato e a privacidade de seus interlocutores. A falta desta garantia favorece a recusa das fontes em revelar dados, fatos e eventos que possam gerar controvérsias ou escândalos políticos.
A bisbilhotice eletrônica sobre o trabalho de jornalistas investigativos gera ainda um outro problema. Já não há mais garantia de sigilo da fonte de dados colhidos para uma reportagem, porque o repórter perde o controle sobre o material que ele recolheu, caso esteja sendo monitorado por alguma iniciativa tipo Pegasus. É claro que, sabendo disto, a fonte evitará revelar dados, fatos ou eventos comprometedores.
O depoimento de Bradley Hope, ex-repórter do The Wall Street Journal, dado ao jornal britânico The Guardian dá uma amostra do que é fazer jornalismo investigativo nesta era da super vigilância eletrônica: “ …hoje, eu preciso tomar medidas extremas para proteger meus dados e minha vida… usar computador ou celular pessoal está totalmente fora de questão”.
O que fazer?
As armadilhas eletrônicas desenvolvidas para monitorar celulares, computadores e conversas por rede sociais acabaram levando muitos repórteres investigativos à constatação de que equipamentos obsoletos como telefones fixos e películas de celuloide na fotografia acabam sendo mais eficientes contra bisbilhoteiros indesejáveis do que equipamentos digitais.
É uma das ironias da era digital. Quando a tecnologia fornece ferramentas eletrônicas que aumentam a eficiência e amplitude de processos investigativos em reportagens jornalísticas, a contrainteligência de governos, partidos políticos e empresas privadas obriga repórteres a voltarem no tempo em busca de privacidade e segurança [3].
A espionagem eletrônica, junto com as fake news, é hoje a arma mais eficiente do arsenal intimidatório de governos e empresas contra indivíduos e movimentos em defesa dos direitos humanos, do meio ambiente e do fim da desigualdade econômico-social. Cabe ao conjunto das pessoas fiscalizar, denunciar e cobrar das autoridades medidas de controle das atividades ilegais e clandestinas de projetos como o Pegasus.
O jornal britânico The Guardian é considerado hoje pelo Instituto Nieman, da Universidade Harvard, o modelo mundial no esforço para conscientizar a opinião pública das consequências do assédio informativo e da espionagem eletrônica da atividade jornalística. O jornal foi o único órgão da imprensa a assumir a denúncia do projeto Pegasus como uma estratégia editorial permanente.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.
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Notas
[1] O Pegasus é um software espião capaz de invadir celulares, computadores e tablets mesmos desligados, captar arquivos e transmitir mensagens sem que o dono do aparelho saiba. Desde o ano passado, a versão mais sofisticada do software foi implantada em 1.400 celulares de políticos, governantes, empresários, ativistas e jornalistas em todo o mundo. A espionagem de jornalistas e ativistas feita pelo Pegasus foi revelada pela organização Anistia Internacional
[2] Edward Joseph Snowden, um analista de sistemas e ex-administrador de sistemas da CIA, divulgou em 2013 os dados sobre espionagem eletrônica de jornalistas e governantes estrangeiros em entrevistas aos jornais The Washington Post e The Guardian. Ameaçado de processo por violação de segredos oficiais, Snowden pediu, ainda em 2013, asilo na Rússia, onde continua até hoje.
[3] Mais detalhes sobre as consequências da vigilância extrema no exercício do jornalismo no livro Journalism After Snowden editado por Emily Bell e Taylor Owen e publicado em 2017 pela Columbia University Press.