Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo para Nelson Werneck Sodré

Em 2003, em curso sobre História do Jornalismo que ministrei a alunos do quinto período de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, busquei refletir com a garotada sobre um dos livros que considero o mais lúcido sobre o assunto, do professor Nelson Werneck Sodré (1911-1999), pensador, militar cassado pela revolução de 64, comunista militante e tenaz pesquisador da formação da cultura brasileira contemporânea.

Muitas vezes, durante as aulas, tentamos recriar as condições comportamentais de diversas épocas para compreender melhor o surgimento dos veículos porta-vozes dos ideais circulantes no universo social e político, dos períodos que evoluíram desde o Brasil Colônia até chegar ao Brasil da República, nas suas fases sucessivamente manipuladoras da informação.

Mudanças profundas

Tivemos a sorte de trabalhar sobre a edição post mortem, em que o autor não chegou a ver publicada a introdução que escreveu, já no fim da vida, retratando seu pensamento sobre a mídia nacional no apagar das luzes do século XX, com a clareza necessária para que não nos surpreendamos como o momento atual, em que a mídia oligopolizada torna-se uma das grande vilãs a tecer armadilhas no inconsciente coletivo em período eleitoral.

Abramos aspas:

Antes, era possível discriminar assim o pessoal da imprensa: a direção era recrutada na burguesia, a redação, na camada social média ou pequena burguesia e a oficina no proletariado. Desaparecida a oficina tradicional, o proletariado foi excluído da imprensa. A redação obedece a uma hierarquia nova, mais rígida, povoada, interna e externamente, daqueles que ingressam na profissão através de cursos acadêmicos que, por isso mesmo, demandam estágios para a prática do seu mister.

De qualquer forma, a figura mítica do jornalista foi extinta. Claro que no sentido e com a significação antiga. Não cabe mencionar se há grandes jornalistas, simplesmente a atividade de jornalista está em extinção. Ganhou espaço a reportagem, entretanto, e nessa área é que aparecem agora valores intimamente ligados à imprensa moderna.

A imprensa de hoje, e é de esperar que isso seja transitório, não é elaborada por jornalistas e apresenta um aspecto singular: os grandes jornais de hoje têm fisionomia inteiramente diversa da de antes. Uma das diferenças está na impressionante uniformidade de posições, em cada um dos jornais, e não na diversidade.

A grande imprensa brasileira opera, na fase atual, uma tarefa que nunca antes desempenhou: a de deformar a realidade, ou a de escondê-la. No momento, por exemplo, todos os grandes jornais apóiam o neoliberalismo adotado pelo governo brasileiro, uns com mais veemência, com menos veemência, outros. Tais jornais perderam aquilo que se conhece como credibilidade, o que eles informam não merece confiança. Existe profundo divórcio entre o que o público pensa e acredita e necessita e aquilo que a grande imprensa veicula.

A alienação dessa imprensa nova, e aqui a palavra não tem qualquer identidade com o moderno e muito menos com o popular, é total.

Sodré, que deixou 56 livros publicados, lembrava que nos dias em que escreveu este texto estava em tramitação no Congresso a nova lei de imprensa, e alertava que o neoliberalismo estaria ‘introduzindo profundas, essenciais mudanças na legislação’ e que o que se propunha era ‘assegurar, por dispositivos legais, a situação existente, quando a grande imprensa detém o comando da informação e, com ele, estabelece as regras do jogo político’.

Uma reprise

Estes trechos da introdução não substituem a leitura atenta do livro, que recomendo aos interessados no tema. Mas, como lição do mestre, eu e meus ex-alunos buscamos aprofundar a discussão sobre o conceito, que ele destacava, de ‘oligopolização da imprensa no Brasil e as dificuldades de rompê-la’. Não mudou muito o quadro nestes últimos anos, aliás, o que se vê é mesmo o distanciamento da verdade como objetivo primeiro no conteúdo informacional da mídia em geral, uma alienação de que ele falou, com propriedade.

Sodré, finalizando o texto introdutório da edição, nos lega um parágrafo tão atual que parece escrito em 2006:

A farsa que, no desenvolvimento do processo, torna cada vez mais claro o sentido daquilo que, no Brasil atual, se pretende conhecer e aceitar como democracia, coloca como escândalo não apenas o conceito de democracia como o de realidade nacional, sempre escondida nos grandes jornais e revistas, na imprensa que, pouco a pouco, aparece com os seus traços definidores inconfundíveis de alavancas suportando a alienação e buscando convencer os leitores de que o quadro apresentado, nessa unanimidade torpe de opiniões, resulta de uma fatalidade a que todos devem se curvar. Na verdade, a imprensa oligopolizada e vinculada à estrutura social e política vigente definiu a sua alienação e perdeu qualquer traço do que é nacional aqui. A alienação é o seu retrato.

Este artigo é só um arremedo de reflexão a respeito, mas demonstra que o quadro atual é, na verdade, uma reprise, história antiga, que se repete toda vez que há ameaça de rompimento à hegemonia de quem controla o jogo político, pela informação manipulada e alienante.

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Jornalista e professora universitária, Rio de Janeiro