A notícia mais significativa da economia internacional em janeiro foi, sem dúvida, o rebaixamento, pela agência de rating americana Standard and Poors (S&P), da classificação de nove países europeus – com destaque para a França, a segunda maior economia da zona do euro. No entanto, ao final da leitura de uma manchete alarmante – “Sexta-feira 13 na Europa” – e duas páginas de cobertura, o leitor de O Globo (que não tem a obrigação de ser um especialista em análise de mercado) continua sem saber por que as notas dos nove países foram rebaixadas, já que as opiniões citadas pelo jornal são inconclusas, superficiais, desencontradas e conjunturais.
O início da matéria principal – em colaboração com agências de notícias internacionais – chama o evento de “o Waterloo de Sarkozy” e destaca a reação na oposição socialista, que cumpriu seu papel previsível de criticar o governo pela perda da nota AAA e reclamou por estímulos à demanda. Contudo, o principal candidato do partido à presidência da República, François Hollande, “não chegou a se manifestar”. Enquanto isso, a candidata da ultradireita nacionalista Marine Le Pen, com sua notória verve apocalíptica, exaltou o rebaixamento dizendo ser “a primeira etapa do rompimento da zona do euro”.
A matéria principal cita ainda trecho da nota à imprensa emitida pela S&P. Para a empresa classificadora de risco, “as iniciativas políticas adotadas pelas autoridades europeias nas últimas semanas podem não ser suficientes” para solucionar a crise da dívida. A S&P apontou também para os riscos futuros, como “a redução na oferta de crédito, o aumento nos custos de financiamento de vários países do bloco, as perspectivas de desaceleração da economia e uma aberta e prolongada disputa entre as autoridades europeias sobre a abordagem correta para resolver os desafios.”
Nesse ponto, a economista tcheca Stephany Griffith Jones, professora da Universidade Columbia, critica asperamente as agências de rating como a S&P. Para ela, tais empresas são pró-cíclicas nos períodos de crise, ou seja, com suas notas negativas acabam piorando a situação ao alimentar o pessimismo em empresários e consumidores – que por sua vez, vislumbrando um cenário negativo para o futuro, deixam de investir e consumir, diminuindo então a atividade econômica. No contexto atual isso significa taxas de desemprego altas por um período prolongado na maior parte do continente (excetuando Alemanha e Polônia). Tal crítica não é periférica no debate de economia internacional atual e é compartilhada por nomes do quilate de Paul Krugman e Joseph Stiglitz – dois prêmios Nobel de economia. Trocando em miúdos, essa crítica não poderia simplesmente ser omitida de uma cobertura dos ratings dos países europeus.
Linhas e tendências
Pode-se argumentar, em defesa do jornal, que até o fechamento da edição não se pôde contatar qualquer dos nomes mencionados, o que não anula o fato de que nenhum economista brasileiro da mesma linha de pensamento (Delfim Netto, Bresser-Pereira, Maria da Conceição Tavares, entre outros) ter sido entrevistado. Em vez disso, somente “economistas de mercado” – ou seja, profissionais que trabalham no setor financeiro – foram ouvidos.
Um “administrador do Barclays Bourse” minimizou o noticiário, já que “os investidores têm olhado menos os comentários das agências e mais a capacidade de financiamento dos países”; um “gestor de renda variável da Máxima Asset Management” tampouco demonstrou assombro perante ao fato. Para ele, “estavam faltando notícias ruins sobre a Europa neste início de ano. Os rebaixamentos reduzem um pouco o alívio recente, mas o corte nos ratings já estava em parte considerado nos preços das ações”. E a última opinião citada na matéria principal, do “analista-chefe da XP Investimentos”, apontava que a situação europeia não influenciaria tanto os indicadores do mercado doméstico: “Há dados positivos sobre a recuperação da economia dos EUA e sobre o controle da inflação no Brasil e na China”. Um “estrategista do Santander Private Banking” citado na página seguinte completou o rol de opiniões: “O rebaixamento joga um pouco de água fria, mas não é suficiente para esfriar o optimismo a curto prazo”.
Em comum nas quatro análises o caráter meramente conjuntural, que serve a quem opera diariamente no mercado, mas nada diz a respeito das linhas e tendências de longo prazo na economia e política internacional.
Economia e semiótica
Na segunda página dedicada à cobertura da debacle europeia, o maior espaço é dado à coluna de Miriam Leitão – talvez a principal colunista econômica do país. Em sua análise, lemos a respeito da dramática situação do “calote ordenado” grego e das dificuldades na formação do Fundo Europeu de Estabilização Financeira; porém, pode-se perceber, uma vez mais, o caráter conjuntural da cobertura pela frase que conclui o artigo: “Com sorte, a conjuntura europeia melhora no segundo semestre.”
Também vem à tona no material de O Globo, e particularmente no artigo de Miriam Leitão, a falta de qualquer ideia concreta sobre o que realmente significa o rebaixamento das notas promovido pela S&P. “A revisão da nota da França não só era esperada como inevitável”, afirma a colunista; e, para comprovar, menciona os juros já muito altos que países como França, Itália e Espanha estavam tendo de pagar para rolar suas dívidas nos leilões realizados nos últimos meses de 2011. Oito parágrafos depois, porém, descobrimos que “as decisões das agências, apesar das críticas merecidas que têm recebido, continuam tendo influência no mercado”.
O leitor se depara, então, com o paradoxo de que a notícia fartamente tratada é, ao mesmo tempo, previsível e impactante. Por isso, não é absurdo supor que o rebaixamento das notas pela S&P talvez pertença não somente ao campo da economia, mas também da semiótica – o estudo da cultura através dos símbolos.
Missão jornalística
O mundo das finanças parece escapar quase que totalmente à compreensão do homem médio – vide as montanhas de dinheiro negociadas em microssegundos sete dias por semana em Nova York, Frankfurt, São Paulo, Mumbai ou Cingapura. Até mesmo o colunista do Financial Times Martin Wolf chegou a admitir que “o mundo financeiro é um mundo à parte da economia” (Valor, 26/1) – nada mais kafkiano. Por isso mesmo uma cobertura deste complexo e fundamental setor da vida econômica se enriqueceria com visões de sujeitos de fora.
O fato de apenas economistas de mercado serem ouvidos nas matérias de O Globo diminui a diversidade de pontos de vista e, consequentemente, frusta a missão de qualquer veículo jornalístico: esclarecer, se possível com profundidade nas análises e qualidade no texto, os fatos em todas as suas facetas.
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[Marco Bastos Jr. é graduado em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestrando em História Econômica pela Universidad de Buenos Aires]