As rememorações na imprensa da passagem de Itamar Franco pela presidência da República consistiram, de modo geral, em “fingir ignorar o que se sabe”, como diria Fígaro, personagem de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), a respeito das competências exigidas pela política.
Timidamente, afloraram algumas críticas ao honrado “pai do real”. E algumas alusões a seu singular relacionamento com mulheres, não na vida privada, que não interessa aos distintos leitores, mas em pleno exercício da atividade pública.
O caso mais estapafúrdio foi o da afetuosa confraternização com Lilian Ramos num camarote da Marquês de Sapucaí, na madrugada de 13 de fevereiro –domingo de Carnaval −de 1994, quando se iniciava seu segundo e último ano de governo.
Carnaval do barulho
Aos fatos, disponíveis em arquivos digitalizados. O da Veja é totalmente legível. A capa da edição de 23 de fevereiro era uma montagem do título sobre uma foto. “O X da questão – A folia de Itamar no Carnaval”, em que o X era aplicado sobre as devassadas partes (im)pudendas de uma jovem fotografada ao lado do presidente da República.
Na reportagem, sob o título “Carnaval do barulho”, e o subtítulo “Vulgaridade, ingenuidade, esperteza, bebedeira e oportunismo se misturam na folia vã e inconsequente do camarote do poder”, foram colhidas as informações a seguir.
Lilian Ramos, que havia posado nua para a Playboy em 1986 e feito strip-tease numa boate de Belo Horizonte em 1993, desfilou, com os seios à mostra, como destaque da escola de samba Viradouro. Foi efusivamente saudada por Itamar Franco, que lhe mandava beijinhos. A reportagem da Veja reproduzia um cartão de visita com foto de Lilian onde ficava escancarada a oferta de serviços profissionais sugeridos pela exuberância de suas formas.
A moça desnuda
Após o desfile, vestida apenas com camiseta, meia-calça transparente e sapatos dourados de salto alto, foi parar no camarote do deputado… Valdemar Costa Neto, vejam só o que é a política brasileira!, líder do PL (hoje PR), que a levou ao camarote onde estava Itamar –convidado pela Liga das Escolas de Samba, dominada por notórios bicheiros. O camarote era uma festa, com direito a bebedeira do ministro da Justiça, Maurício Corrêa, posteriormente juiz do STF.
Lilian, a pedido de fotógrafos, levantava os braços, o que fazia subir a camiseta e deixava à mostra os pelos pubianos e outros detalhes anatômicos, devidamente fotografados num tiroteio de flashes. Itamar trocava carinhos e beijinhos com a moça.
Sem humor, mas engraçado
Marcos Sá Corrêa, revelando visão exageradamente crítica das ações de Itamar à frente do governo, sentenciava em comentário, com o brilho costumeiro:
“O presidente é isso aí. Um personagem sem humor, mas engraçado, que se enfiou por acaso numa tragédia nacional, a do impeachment. Reconhecido no seu pequeno papel, fica inofensivo. Falsificado como um barão retinto ou um Napoleão faminto, poderia ser perigoso. Mas os carnavalescos de Brasília quiseram emplumá-lo como uma figura popular e inverossímil. Durante quase um ano e meio, sua universal perplexidade saiu às ruas fantasiada de defesa das estatais, distribuição de renda, política de preços de combustíveis, e até de Fusca. O presidente fazia perguntas. Sacavam-lhe intenções e programas”.
Itamar irritou-se com a cobertura jornalística algo destemperada –lembrar que os jornalistas se julgavam no auge da glória, tendo concorrido para a derrubada de Fernando Collor –e demoraria meses para assinar a Carta de Chapultepec (que garante o sigilo das fontes). “Quando assinou”, informa Alberto Dines, “leu um documento muito agressivo sobre o comportamento da mídia.”
Em 30 de março, mais de um mês depois, a Folha de S.Paulo publica editorial que elogia a firmeza do presidente num embate com o Legislativo e o Judiciário em torno de reivindicações salariais, mas termina assim:
“[…] resta saber se Itamar Franco vai-se contentar em exercer a sua autoridade, o que é um direito – e até um dever – seu, ou se irá além, a ponto de reassumir o comportamento errático e inconstante que o levou a tantas estranhas atitudes no passado. A lógica indica que o presidente não pode ser contrário ao plano econômico que ele mesmo aprovou. Mas há dúvidas”.
Sempre com um pé atrás
Ao longo do regime militar, Itamar foi um oposicionista encrenqueiro, com agenda própria focada em seus interesses na política mineira. Que seriam perfeitamente legítimos e assimiláveis caso não se superpusessem, com relativa frequência, aos interesses da unidade democrática antiditatorial.
Carlos Castello Branco escreveu sobre Itamar, em março de 1993, no Jornal do Brasil :
“O perfil psicológico do presidente da República está claramente desenhado e já em 1975, quando ele chegou ao Senado, teve suas linhas-chaves identificadas. Foi naquela época que a bancada do MDB multiplicou-se. Um dos senadores, Danton Jobim, do Rio de Janeiro, segundo me conta agora seu filho, o escritor Renato Jobim, confidenciou-lhe na época: ‘Apesar de numerosa, a bancada agora se entende bem. Só há um senador recém-eleito que é difícil de lidar, está sempre com um pé atrás e discute por qualquer coisa: Itamar Franco, de Minas’.”
Em maio, Castellinho fez crítica mais aguda:
“Prisioneiro das ideias dos tempos em que disputava a vereança em Juiz de Fora e de simpática mas arriscada fidelidade aos velhos amigos, o presidente da República vai consolidando a impressão histórica de que, pelos traços da sua personalidade, seria alguém incapaz de trocar a porta da botica da sua cidade pelo comando de reuniões cuja agenda e cujos participantes se voltassem para um outro tipo de responsabilidade.
“Como se sabe, no país não há quem objete contra a honestidade e os bons propósitos do cidadão Itamar Franco. […]
“Não é fácil a quem se habituou a admirar as virtudes privadas e o cidadão Itamar Franco e continua a sentir por ele respeito e amizade vê-lo envolto em dificuldades que a prova provada dos acontecimentos demonstra estarem senão fora pelo menos à margem das suas cogitações habituais e do seu ângulo de visão desse mundo […].”
Sem noção das consequências
Depois de sua passagem pela presidência, Itamar voltou a medir o mundo pelo metro da política mineira. Tendo perdido a indicação do PMDB para concorrer à presidência da República em 1998, elegeu-se governador. Em janeiro de 1999, decretou moratória da dívida de Minas Gerais. O governo federal, segundo Fernando Henrique Cardoso (A Arte da Política), viu-se a braços com a descrença generalizada em sua capacidade de realizar um ajuste fiscal.
Itamar, escreveu FHC, “agia com objetivos políticos e pouco se preocupava com as consequências econômicas de seus atos e declarações”.
A dimensão menor de Itamar foi apontada por Fernando Barros e Silva na Folha de segunda-feira (4/7, “Itamar, o acidental”), sem que seus méritos, no exercício da presidência, tenham sido omitidos. Mas análises desse tipo foram exceção, não regra.