Embora se possa afirmar que, pontualmente, a qualidade do noticiário veiculado pelos grandes jornais brasileiros vem melhorando perceptivelmente nas últimas semanas, merece um estudo a aparente incapacidade da imprensa de manter um padrão satisfatório por um longo período.
O episódio recente da jovem mãe que foi violentada e vilipendiada na cela de uma delegacia, após ter sido acusada por uma médica de haver intoxicado sua própria filha com cocaína, é um caso emblemático. Mas a persistente crise no transporte aéreo talvez seja um sintoma mais claro dessa anomalia.
A vítima da histeria da médica e da desumanidade do delegado que a condenou ao linchamento é mais um personagem no teatro patológico da nossa sociedade, no qual a imprensa não consegue se manter imune. Eventualmente, a mídia impressa se deixa levar pelos meios eletrônicos, em especial a televisão, e perde a racionalidade, como nesse e no caso da Escola Base e em muitos outros que não alcançaram tanta repercussão.
Da televisão, salvo cada vez mais raras exceções, pouco se pode esperar em termos de qualidade jornalística. O que não se pode admitir é que esse meio, que transformou o jornalismo em entretenimento irresponsável, continue pautando aquele segmento da imprensa que ainda se considera nobre.
Vinte anos atrás
Os fatos de grande repercussão emocional, como os crimes hediondos e os comportamentos bizarros, eventualmente podem escapar ao escrutínio dos editores, embora se deva esperar deles, sempre, que se comportem como uma reserva de racionalidade. Há pelo menos um exemplo edificante, ocorrido em outubro de 1992, quando policiais militares sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães mataram pelo menos 111 detentos no antigo complexo penitenciário do Carandiru, em São Paulo.
Apesar de a maioria dos leitores, em cartas e telefonemas às redações, ter manifestado apoio à ação policial, os editores, respaldados pelos diretores dos grandes jornais, mantiveram o noticiário crítico, condenando os assassinatos. O então diretor responsável do jornal O Estado de S.Paulo, Júlio Mesquita Neto, negou-se a receber o então governador Luiz Antonio Fleury Filho, e deixou-o esperando no helicóptero, proibindo seu ingresso na sede do diário. Aos editores, afirmou que não receberia aquele que considerava como o responsável pelo massacre, e manteve a orientação pautada pelo respeito aos direitos humanos, chegando a afirmar que ‘às vezes, o cliente não tem razão’.
Essa capacidade de se posicionar contra as marés de opinião popular parece estar se debilitando nas redações, como se a inteligência dos jornais estivesse sofrendo de uma visão fragmentada. No caso da recente decisão do Congresso Nacional de aumentar os salários dos parlamentares, uma escolha aparentemente simples – a de dar vazão à indignação percebida na sociedade – pode ter embutido uma falha na avaliação do acontecimento. Exceto por uma ou outra sacada, como a de comparar os vencimentos de parlamentares com o PIB per capita, no Brasil e em outros países, o que se viu foi o velho e pouco criativo declaracionismo.
Na crise do transporte aéreo, da mesma forma, o mosaico de declarações e a falta de precisão das informações fez com que o material produzido seja de pouca valia para os pesquisadores que, no futuro, tenham intenção de estudar a história da infra-estrutura de transportes no Brasil. Talvez faltem especialistas, e certamente não veremos mais aquelas redações de 20 anos atrás, nas quais se podiam encontrar profissionais que, por mero gosto, se dedicavam a mergulhar em certos temas com mais afinco do que aquilo que exige a rotina do jornalismo. Gente que fazia do conhecimento um hobby.
Inteligência coletiva
O mundo certamente se tornou mais complexo nesse período, e o Brasil também. Em muitas outras atividades da sociedade, os profissionais e suas instituições aprenderam a considerar a teoria da complexidade, a utilizar as redes de conhecimento, a levar em conta as relações sistêmicas entre os fatos e os fenômenos. A imprensa segue pensando linearmente, como no mundo mecânico, e seu raciocínio já não nos ajuda a entender os contextos em que os fatos acontecem.
Paralelamente ao choque das novas tecnologias, que estão transformando radicalmente os processos de trabalho em quase todas as atividades humanas, ocorre um choque de mentalidade, um processo de formação de novas visões de mundo, que exigem mais do que o velho relato linear dos jornais. Os jovens leitores já não se satisfazem com a imposição de um viés único aos fatos, e complementam o conhecimento com a sociabilização física ou virtual. Os jornais não têm o formato adequado para concorrer nesse ambiente, mas podem criar a linguagem apropriada.
Para isso, porém há um longo caminho a ser percorrido. O primeiro passo, com certeza, será um ato de humildade: a abdicação dessa mania de impor uma visão unilateral do mundo e a abertura para a amplitude da inteligência coletiva, com o reconhecimento de que a diversidade é uma riqueza a ser explorada. Nem que seja preciso contrariar eventualmente o dono do jornal ou aquele leitor típico. Afinal, como já disse Mesquita Neto, o cliente nem sempre tem razão.
******
Jornalista