Uma pergunta me assola nesses dias de outono inconsistente: onde afinal é o lugar dos pobres no Rio de Janeiro?
Uns reclamam que eles estão em todo lugar. Outros reclamam que eles só estão em alguns lugares. O fato é que há opiniões diversas. E de opiniões diversas minha cabeça anda tão repleta… Então, para que vocês me ajudem a chegar a alguma conclusão, exponho aqui algumas das respostas que tenho ouvido para a pergunta: onde é o lugar dos pobres?
As fontes são diversas e o critério para a ordem da exposição aqui é nenhum, logo se verá. Eu não vou dar uma de socióloga urbana e contribuir com as minhas opiniões. Foram somente três aulas na pós-graduação por enquanto. A greve na rede estadual continua, companheiro.
Minha humilde contribuição é disponibilizar cinco opiniões, de outros e percepções minhas. Se houver algo de meu lado socióloga aqui estará implícito em meu olhar de andarilha intrometida. Conclusões? Não por agora. E não adianta apertar o botão do page down e conferir o fim do texto. Lê o primeiro parágrafo de novo, querido leitor. Eu disse que preciso de ajuda para chegar a algum consenso por aqui. Então, bem, vamos ouvir o mundo!
O lugar dos pobres é na pobreza
A academia de fora do poder
Em meio a sorrisos Fernando Henrique disse isso mesmo no confortável sofá do Jô. Não, injustiça minha. Ele pode não ter dito. Pode ter sido eu a entender assim. É que ao ouvi-lo declarar que ‘pobre quando chega lá em cima acha que é outra coisa’ supus que o nosso sociólogo, que acredito, ao contrário de mim, é capaz de análises baseadas nas teses de Marx, nos conceitos de Wirth e de articular em uma única sentença o pensamento da escola de Chicago, a obra de Gilberto Freyre e a Feira de São Cristóvão em oito línguas diferentes, disse exatamente que a pobreza é o lugar dos pobres.
Mas analisemos o que FH diz. ‘Quando chega lá’ quer dizer em outro lugar que não o seu de origem, que enveredando pela etimologia concluímos ser a pobreza. Não conheço o que pensa verdadeiramente nosso ex-presidente sobre ascensão social ou territorialização da pobreza. Mas por seu passado imagino que prefira que cada um permaneça em seu lugar de origem. Afinal, nosso intelectual sempre ao lar retorna, entre seus pares permanece e só assim sente-se à vontade. Para ele basta ‘ter um pezinho’ em outro ambiente que não o seu. A cozinha só verá essa parte de seu corpo, afinal, ele não tem origem por lá. Para FH vale a lógica da segregação pelas distâncias morais. Os vários mundos se tocam, mas não se interpenetram. E no caso de nosso príncipe tucano toque só com o pé.
‘Acha que é outra coisa’ – quem acha não sabe, e quem não sabe nem mesmo sabe que não sabe. É o mesmo que quem sabe, pode, e quem não sabe, não sabe que pode. Pois é, FH, brilhantíssimo intelectual aqui revela um problema. Pobre acha que é outra coisa. Infelizmente, não sabe que é. Não sabe que pobre, ou não pobre, é ser humano. Ser de direitos. É, pobre só acha mesmo.
O lugar dos pobres é ser ‘os pobres’
O olhar sobre si mesmo
Essa resposta foi me dada por pessoa com experiência. Gabaritada mesmo no assunto. Personagem do documentário Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, é quem conclui que o lugar dos pobres é ser ‘os pobres’. Ora essa. Eu deveria me lembrar de pensar na simplicidade. Que melhor lugar para um pobre do que ‘ser pobre’. Sim, um ethos inato. O documentário de Coutinho foi todo filmado no ultimo dia do ano de 1999 no morro que fica na Zona Sul do Rio. Último dia do ano, sabe aquele em que a gente promete mudar tudo e acha mesmo que tudo vai dar certo? Então, nesse dia o personagem filmado por Coutinho nos diz que no ano 2000 ele vai… continuar a ser pobre! Sim, porque, segundo ele, é assim, de geração em geração… estão lá… seus pais estiveram lá antes dele… e seus filhos continuarão lá. É para isso que estão lá. Para estar lá. O lugar dele é ser ele. Ser pobre. Assim, de geração em geração.
O lugar dos pobres é sair da pobreza
Uma boa idéia que ninguém viu ou não quis ver
Bom, mas aí vem o governo e me diz que o lugar dos pobres é na porta de saída… sim, sim, ao contrário de FH que não acha que se deve ir além de uma pisadinha em outro lugar que não o seu, o governo quer todos na porta de saída da pobreza. Esse é o nome que dão aos programas que não só mantêm os pobres vivos, dando-lhes dinheiro pra comer, mas que possibilitam que eles deixem de ser… pobres!
Tudo bem, ainda não vi isso. Mas a idéia é boa. E nem é difícil de se executar. Bastaria que o Sr. ministro que dá dinheiro para comprar comida ou o outro Sr. ministro que dá terra para plantar entrassem em acordo com o Sr. ministro que ensina a gerir a terra onde se planta, com o Sr. ministro que paga o professor pra ele dar aula, com o Sr. ministro que deixa o hospital funcionando com sua funcionalidade correta, gerar saúde e não doença… é só um fazer sua parte e passar a bola pro outro e este outro fazer sua parte também. Tipo batata quente. Aí o pobre recebe comida, consegue transporte para ir à escola, tem aula na escola, aprende toda a decoreba pra passar no vestibular, vai à universidade. Chegando até aqui o pobre já entra para a vanguarda intelectual dos pobres, como chamam os primeiros pobres de cada família ou comunidade a entrar para a universiadade. Mas, seguindo, aí o pobre da vanguarda intelectual dos pobres tem aula, come no bandejão, aprende uma profissão, consegue trabalho, tem direitos trabalhistas (olha trabalhador com direitos! Já tá meio utópico isso aqui, né?), vai ao trabalho e volta sem levar tiro, tem filhos quando quer e porque quer e… sai da pobreza! Lá se foi ele pela porta… talvez vire até classe média!
O lugar dos pobres é no mercado
A perda da inocência na Praça Saens Pena
Mas nem só do que me dizem e do que me escrevem me chegam possibilidades de resposta. Também do que apreendo do mundo me chegam versões. Pois bem, por causa de uma consulta médica estava eu almoçando na Praça Saens Pena, Tijuca. Escolhi um lugar cujo nome é constituído pela palavra que designa a classe economicamente favorecida mais apóstrofo e S, que formam o caso possessivo em inglês e que é tão querido no Brasil por restaurantes, bares, bordéis, farmácias, açougues e afins. Sentei-me, confesso, mais interessada em terminar a leitura do meu texto de Park (A cidade, clássico dos iniciantes em sociologia urbana) e na lasanha de frango que acabara de pedir. Mas, minha feia mania de prestar atenção nas conversas das mesas ao redor não se conteve. Dois senhores, que estavam atrás de mim e aos quais, portanto, não podia ver, conversavam sobre negócios entre baforadas em seus cigarros. No entanto, as idas e vindas da garçonete do local àquela mesa aumentavam, tornando-se mais e mais freqüentes. A cada visita da garçonete à mesa os homens faziam-lhe uma pergunta. De onde você é? Quando chegou? Veio sozinha? Ah, elas também vieram? E você gosta? E por quê? E por que não?
Os senhores perguntavam à atendente de onde ela era. Era óbvio que perguntavam isso, pois as feições e o sotaque da moça já denunciavam que ela era do Nordeste. O interesse deles poderia ser comum, talvez fossem de lá também, talvez estivessem atraídos pela beleza da moça. Mas não era isso. A certa altura os senhores disseram com a naturalidade de quem pede um pão na padaria: ‘Preciso de uma de vocês. Pago bem, hein? Fala com essas outras aí como você. É só me procurar’.
De repente tudo ficou claro. Visualizei levas de cearenses chegando ao ‘pessoas financeiramente privilegiadas place’. A nítida imagem de um ônibus descarregando uma fila de mulheres indistinguíveis, com caras de sem-cara, histórias sem histórias, um mesmo ‘ser’ e um nada em frente ao restaurante formou-se em minha retina. Quadros de Tarsila do Amaral invadiram a lasanha que eu agora fitava envergonhada de minha inocência. Levas de moças funcionais para a mesma função. Servir pratos, limpar mesas. Tão natural. Nascem para isso. São mantidas vivas para isso. Como não havia percebido? É o lugar delas. Se precisamos de uma empregada ou alguém para fazer a limpeza basta ir ao ‘pessoas financeiramente privilegiadas place’ e pedir por uma. Ora essa! Tão comum. Onde mais eu esperava encontrar mocinhas migrantes do Nordeste? Simples assim. Sem identificação por cor, como antigamente se fazia. Bastam-nos que sejam analfabetas, pobres, de longe, de outro lugar. Estabeleçamos um aqui e um lá e pronto. Temos a quem vitimar. Um mercado de garçonetes. E nem precisamos passar recibo de compra e venda, so old fashion. Já nos desobrigaram desse trabalho. Assine uma carteira que tranqüiliza sua consciência. Cumpra os direitos (?) do trabalhador que o (des)governo manda em tempos em que o trabalho não existe mais, mais por desejo do que na realidade.
O lugar de pobre não é na beleza
E para fechar ouçamos a nossa imprensa
Pobreza não é bonita. A não ser para documentaristas interessados em exercitar olhares etnográficos em comunidades tradicionais e também os fãs desses documentaristas, ninguém acha a pobreza bonita. Nem pobre acha, já dizia o carnavalesco. E daí que é uma conclusão óbvia, portanto, que o lugar do pobre não é na beleza. Vai ver que é por eu não conseguir chegar a conclusões tão óbvias como essa que não fui contratada por nenhuma redação de jornal. Sim, porque o jornalista do JB sabe disso. Vejam só o que ele diz em matéria no dia 28 de abril sobre o aniversário do projeto Rio Cidade no Leblon:
‘Erro número 3: O Rio cidade continua lindo. Mas as praças são repletas de pedintes e mendigos.’
O Rio é lindo… e pobreza, convenhamos não pode ficar atrapalhando essa beleza. Esperarei ansiosa pela próxima matéria do distinto coleguinha. Talvez ele me diga onde é que a pobreza deva ficar, já que até agora só nos mostra onde não deve.
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Jornalista, pós-graduanda em Sociologia Urbana na UERJ