Por ter sido citado no artigo ‘O maridão na net e o futuro dos jornais‘, de Ricardo Kotscho, publicado no blog Balaio e reproduzido neste Observatório, quero fazer as seguintes considerações:
1.
Confesso que não consigo alcançar a transcendência do fato de o maridão de dona Lina Vieira ter sido ministro interino do governo FHC. Por acaso isso transforma a ex-chefe da Receita Federal compulsoriamente numa mentirosa? O fato de seu marido ter sido funcionário daquele governo é suficiente para desqualificá-la como testemunha? (Nesse caso, a opinião do blogueiro Kotscho, ele mesmo ex-funcionário e devoto declarado do governo Lula, estaria também sob suspeição?)Um típico caso da cacofonia ideológica da net. Sob o ponto de vista estritamente jornalístico, que é o que me interessa, fico com a opinião sobriamente técnica do ombudsman da Folha de S.Paulo, que reduziu o caso às suas devidas proporções: ‘Também foi com atraso que o jornal noticiou que o marido de Vieira foi ministro interino do governo FHC, o que não é muito relevante, mas não deixa de ser curioso’.
2.
Kotscho argumenta que os blogs produzem informações próprias, sim, e cita como prova suas entrevistas exclusivas com Marina Silva e outros presidenciáveis e sua descrição da saga heróica do vice José Alencar. Eu não disse que blogs não podem produzir informações exclusivas. Até podem e em alguns casos até o fazem. O que eles não conseguem fazer é fornecer uma narrativa completa, plenamente organizada, editada, ordenada e lógica daquilo que aconteceu em sua cidade, em seu estado e no mundo nas 24 horas anteriores nos mais diversos setores da atividade humana.Pergunte a um consumidor razoavelmente exigente de informação se ele, num determinado dia, substituiria a leitura de seu jornal (pouco importa se em papel ou em versão eletrônica) por uma entrevista do Kotscho com Marina Silva. Ele poderá, é claro, ler o jornal e também a entrevista. Mas a quem ele dará prioridade? Por mais exclusivas, bombásticas, talentosas e extraordinárias que todas essas entrevistas sejam, sempre serão complementares às informações do jornal e não substitutas. E convenhamos também que seria um esforço muito grande trocar a leitura de um jornal medianamente bem editado, com informação confiável, verificável e honesta pela garimpagem dos 43.500 blogs que o Kotscho nos oferece como alternativa para criar um painel diário do mundo de acordo com as conveniências do freguês.
Reparem bem que não estou dizendo que os jornais são perfeitos, livres de falhas informativas ou totalmente isentos de facciosismo. Estou dizendo que entre as alternativas existentes não se criou ainda nenhuma que possa ser considerada melhor.
Sorvetes ruins
3.
Em nenhum momento, ao contrário do que Kotscho afirma, eu disse que os jornais estão perdendo audiência ‘por culpa’ da internet. Dou por subentendido que eu me referia à audiência da versão impressa dos jornais. Uma pergunta é inevitável: mesmo os que acusam os jornais de papel de obsolescência vão se informar sobre o que está acontecendo no mundo nos blogs militantes ou nos sites da Folha, do Estadão, do Globo ou de outros portais alimentados basicamente pelas agências de notícias dessas grandes organizações informativas?No momento em que escrevo, o portal que abriga o blog do Kotscho exibe, em sua página de entrada, notícias sobre o enterro de Ted Kennedy, sobre eleições no Japão, sobre o jogo Manchester x Arsenal, sobre gripe suína, sobre Michael Jackson – todas originárias do mainstream da indústria da informação. As notícias são o prato de resistência do cardápio. Os blogs, simples adornos. Sobremesas, talvez.
E repito o que já disse no artigo anterior (‘Os jornais e a cacofonia da internet‘): não é que as empresas informativas façam isso por alguma espécie de altruísmo especial ou ‘compromisso social’ , como talvez gostassem os sacerdotes da reforma do mundo. Fazem porque são as únicas em condições de manter grandes estruturas informativas e essa é a natureza de seu negócio. E se não fizerem isso direito simplesmente deixam de ganhar dinheiro e vão à falência, como acontece, por exemplo, com uma sorveteria que produz maus sorvetes ou uma fábrica de automóveis que produz calhambeques. Elas são produtoras, processadoras e distribuidoras de informação – e não de ideologia.
Objeções fundamentadas
4.
Kotscho me informa, com a solicitude, a gentileza e a lhaneza de trato que o caracterizam, que ‘o mundo da informação mudou, caro Sandro Vaia’ (…) ‘e só os jornalões ainda não perceberam’. Eis aí uma afirmação, caro Ricardo Kotscho, que eu considero temerária. A informação é o que é desde o começo do mundo. Sua precisão, essencialidade, exatidão e honestidade dependem do agente que a produz e de sua confiabilidade. O que pode ter mudado é a velocidade e a forma como ela é distribuída e a maneira com que as pessoas lidam com ela. E essa, sim, é a grande mudança que a ferramenta da internet está provocando no mundo da informação.Agora qualquer pessoa pode discordar daquilo que os jornais publicam e os entes individuais ou coletivos passaram a ter meios de produzir grandes e ruidosas vagas de contestação. É uma revolta contra o que você define como ‘conteúdo de baixa qualidade’ e ‘indiferenciação dos produtos de pensamento único que não sabem mais como atender freguesia cada vez mais exigente e participativa’.
Acontece que no mais das vezes – estou falando de um fenômeno dominante no cenário da blogosfera brasileira – a freguesia ‘exigente e participativa’ não está minimamente preocupada em melhorar o nível de qualidade do produto informativo – o que seria saudável e benéfico. Na maioria das vezes, a freguesia ‘exigente e participativa’ é um ente ideológico que quer trocar aquilo que ela, por juízo político, chama de pensamento único, por outro tipo de pensamento único – que é o seu próprio pensamento, e que ela considera como único legítimo pelo fato de ser aquele que expressa preferencialmente, quando não exclusivamente, o seu ponto de vista. É aí que a ideologia entra como ruído e pretende alterar, em obediência a seus próprios dogmas, a característica técnica essencialmente neutra da informação.
A contestação à mídia independente, no fundo, é a manifestação de uma revolta pela dificuldade – e às vezes até mesmo a impossibilidade – de torná-la instrumento partidário. Tanto que as críticas que se fazem a ela raramente contém contestações factuais razoáveis ou objeções tecnicamente fundamentadas contra informações imprecisas ou falsas. São sempre juízos de valor ideológicos. E a ideologia, como dizia Jean François Revel, suspende a percepção do real e o exercício da consciência moral – como o noticiário político comprova dramaticamente todos os dias.
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Jornalista