Um massacre de dezenas, talvez centenas, de indígenas ocorre em um país vizinho ao Brasil e o leitor das principais publicações da mídia brasileira não só não é informado das reais proporções do ocorrido – e de seu grau de violência –, como não lhe são fornecidos elementos que possibilitem a compreensão dos interesses em jogo e da complexidade da situação.
Se a falta de contextualização é, em geral, um dos mais graves problemas do jornalismo nativo, na editoria de Internacional trata-se, com frequência, de defeito levado ao paroxismo. A cobertura das causas e consequências do banho de sangue no Peru tem se limitado, nos grandes jornais e na maioria das revistas semanais, a retalhos inconsistentes e tendenciosos, no mais das vezes baseados em declarações oficiais e no retrato do ‘aqui e agora’ da crise que assola o país vizinho. Isso sem mencionar a aceitação passiva dos números oficiais de indígenas mortos no conflito – que têm sido contestados, fora do Peru, mesmo pela mídia corporativa mais conservadora.
O retorno de García ao poder
Para se compreender a atual crise peruana, faz-se necessária alguma contextualização histórica: Alan García é eleito presidente do país, pela segunda vez, em 2006. Seria como se Fernando Collor de Mello fosse novamente eleito presidente do Brasil.
A primeira administração de García (1985-1990) fora escandalosamente corrupta e legara a um país então sitiado pelo terrorismo do grupo maoísta Sendero Luminoso a pior crise econômica de sua história. García deixou o governo sob grande insatisfação popular e a um triz de sofrer impeachment (um ano depois, quando se intensifica a investigação sobre a corrupção em seu governo, é afastado temporariamente do Senado e exila-se na Colômbia).
Mas a histeria que tomou conta das elites, da mídia peruana e da classe média urbana com a possibilidade da vitória do militar nacionalista Ollanta Humala – vendido pela mídia como uma espécie de Hugo Chávez peruano – permite que se consubstancie o que meses antes parecia inimaginável: a volta de Alan García e do aprismo [de APRA, Alianza Popular Revolucionária Americana, fundada em 1924 por Víctor Raúl Haya de la Torre]– agora convertidos ao populismo de centro-direita – ao poder.
O projeto de exploração da Amazônia
Contrariando suas propostas de campanha, García anuncia, em dois artigos escritos em novembro de 2007, sua intenção de explorar a Amazônia por intermédio de vultosos empreendimentos madeireiros que se viabilizariam com a concessão de grandes extensões de terras a empresas multinacionais. Projeto democrático e ecológico, como se vê. Em dada passagem, ele candidamente pergunta: ‘Os que se opõem dizem que não se pode dar terras na Amazônia (e por que na costa e na serra sim?)’. Nos dois artigos não há uma vírgula sobre os povos indígenas que lá habitam, os quais o apoiaram no primeiro governo. Tal omissão não impede que a desculpa de García para implementar o programa seja a mesmíssima utilizada por governos anteriores, com os resultados sabidos: combater a pobreza na região.
Porém, como observam os antropólogos Alberto Chirif e Frederica Barclay, no excelente artigo ‘Ataques y mentiras contra los derechos indígenas‘, ‘a pobreza que realmente afeta os indígenas amazônicos está precisamente nas zonas que têm sido devastadas pela colonização e pelas indústrias extrativistas, que têm contaminado o meio ambiente, afetado sua saúde e destruído suas redes sociais de solidariedade. Mas essas políticas do governo não se voltam à solução desses problemas, mas ao seu agravamento’.
No entanto, García ignora as reações negativas que o projeto suscita e obtém do Congresso autorização temporária para governar por meio de decretos legislativos. Essa autorização é válida apenas para decisões relativas ao TLC (Tratado de Libre Comércio Perú-EUA), mas ele não se importa com esse ‘detalhe técnico’ e passa a gerir de forma direta o projeto para a Amazônia. (Ou, posto de outra forma: a ocupação comercial da Amazônia seria item obrigatório para assinatura do TLC, mas isso não poderia ser publicamente assumido.)
Ataques aos direitos dos índigenas
Ato contínuo, publica decretos facilitando a exploração comercial de 60% da Amazônia peruana, acabando com o direito de imprescritibilidade das terras indígenas e permitindo que grileiros estabelecidos há apenas quatro anos fiquem com terras comunais. Um dos decretos permite ainda que se compre, com a anuência de apenas 3 de seus membros nativos, toda a propriedade de cada comunidade indígena.
Em agosto de 2008 começam as paralisações organizadas pela Aidesep (Asociación Inerétnica de Desarrollo de la Selva Peruana), que representa 1.350 comunidades nativas e cerca de 350.000 indígenas. A pressão a princípio funciona, o Congresso derruba parte dos decretos, a Defensoría Publica intervêm e as instituições do país parecem dar mostras de que funcionariam a contento.
Mas García, que é apoiado pelos militares, pelo grande capital internacional e, o que é mais revelador, até pelos seguidores do ex-presidente Alberto Fujimori – bem como pela mídia e pelos setores médios da população, concentrados nas grandes cidades e satisfeitos com o desempenho da economia do país (que há 7 anos cresce, em média, 7% ao ano) –, reage com rapidez e promulga novos decretos, ao mesmo tempo em que intensifica a cooptação de setores do Congresso. É bom lembrar que os dados da economia peruana costumam ser postos sob suspeita, já que o INEI (uma espécie de IBGE peruano) teria deixado de ser confiável desde que seu presidente foi demitido e processado por divulgar estatísticas que contrariavam o Executivo.
Os projeto é, de início, associado à corrupção: em outubro de 2008, todo o gabinete peruano é obrigado a renunciar após políticos apristas serem flagrados recebendo grandes somas para alterar as licitações das vendas de lotes petrolíferos na Amazônia. O processo está suspenso porque o Judiciário alega não possuir determinados programas de computador necessários para retirar a informação dos HDs…
Esse é o cenário que contrapõe os povos indígenas e o governo em torno do megaprojeto de ocupação extrativista da Amazônia. O pomo da discórdia é a popularmente chamada ‘Consulta’ – o ‘Convenio 169’ (Lei nº 26253) que firma a adesão do país às regras da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho), estabelecendo que as comunidades indígenas nativas devem ser formalmente consultadas ‘cada vez que se prevean medidas legislativas o administrativas susceptibles de afectarles directamente’. Assinada há 15 anos, a lei jamais foi cumprida. Ela prevê, ainda, que tal consulta deve ser feita ‘con la finalidad de llegar a un acuerdo o lograr el consentimiento acerca de las medidas propuestas’ (Art. 6º, incisos 1 e 2). Portanto, baseados nestes incisos, o entendimento determinado pela Defensoría del Pueblo é que se os indígenas concordarem parcialmente com as medidas propostas, estas devem se adequar às suas demandas; se delas discordarem,’el Estado debe evaluar su decisión de adoptar la medida, adecuarla o desistirse de ella’ Ou seja, ao contrário do que agora apregoam porta-vozes do governo peruano, a ‘Consulta’ é, sim, vinculante.
‘A Amazônia é de todos’
No entanto, García, numa jogada típica do neopopulismo aprista, passa a defender que a Amazônia pertence a todos os peruanos – e que, portanto, o direito de participar da ‘Consulta’ e decidir sobre o que fazer com as terras amazônicas deve ser votado por todos. A legislação é absolutamente clara quanto aos beneficiários da ‘Consulta’ – as comunidades indígenas que há séculos cultivam aquelas terras –, mas o sofisma de García cai como uma luva aos anseios midiáticos e das elites, que adotam-no como discurso e passam a difundi-lo.
Na conformação sócio-política do Peru atual, os indígenas, embora em grande número (35% da população) se computados os estratos urbanos e os campesinos, ocupam posição minoritária em termos de força política, contando apenas com o apoio do que restou da esquerda (que ou aderiu ao projeto neoliberal ainda em alta no país ou foi levada de roldão na ‘luta contra o terror’), da Aidesep, de algumas ONGs (embora entre elas destaquem-se organizações de projeção internacional) e com a atuação destemida da Defensoria del Pueblo, única instituição peruana que tem resistido sistematicamente contra os abusos de García.
Estes incluem as cada vez mais frequentes concessões de autorização para que empresas como a canadense Pacific Stratus Energy, a franco-britânica Perenco e até a Petrobras possam operar no interior de reservas indígenas, onde tem sido descoberto petróleo. Ao mesmo tempo, sob a alegação de razões de segurança nacional e evidenciando a política antiindígena, tem sido negada autorização para a decretação de duas novas reservas e de um parque nacional, com a desculpa esfarrapadíssima de que os 700 índios secoyas peruanos e os 300 equatorianos que as habitam rebelar-se-iam e criariam um país autônomo. No entanto, o governo mostra-se negligente com a verdadeira segurança nacional, fazendo vista grossa para uma cratera de – até agora – 150 km quadrados aberta pela empresa madeireira Newman Lumber Company (EUA) ao largo da fronteira com a Bolívia.
Rios de sangue
Desesperados ante tal cenário e na iminência de perderem suas terras, os indígenas aumentam o tom e a frequência dos protestos, bloqueando estradas. Em 9 de maio, o governo declara Estado de Emergência em cinco estados da Amazônia. Está aberto o caminho para a disseminação da violência oficial, intermitente na história do país.
Para dar continuidade a uma história de violência e extermínio dos povos indígenas, em 5 de junho chegam à região 369 efetivos da temida Dinoes (Direção Nacional de Operativos Especiais), fortemente armados, tal qual os contingentes das Forças Armadas que os acompanham. Em 5 de junho iniciam o que a imprensa chama de uma batalha – mas, como aponta João Villaverde, massacre seria uma melhor descrição – contra a revolta indígena, com saldo de mortes incerto.
Como registra José Álvarez Alonso, em artigo sereno mas contundente (em espanhol), os setores médios urbanos e as elites ‘seguem considerando os indígenas cidadãos de segunda classe [condição que foi corroborada por García em uma de suas falas], `esses chamados nativos´, como alguns os qualificam com desprezo. Enquanto se mostra na televisão cenas da dor dos valorosos policiais mortos no cumprimento do dever, se ignora ou minimiza-se a cifra de mortos indígenas, que alguns calculam en mais de uma centena, talvez duas’.
As rádios locais, que se referem ao conflito como ‘la matanza‘, relatam execuções e grande número de corpos queimados e atirados a um rio. No dias seguintes, um número crescente de organizações indígenas e ONGs acusam o governo de García de massacre e genocídio.
Após a matança, durante 5 dias, ninguém pôde entrar na zona de ‘batalha’, nem imprensa, nem órgãos de direitos humanos, nem a Cruz Vermelha; foi instituído toque de recolher. Em seguida, a lei que garantia a ‘Consulta’ foi suspensa (substituída nos últimos dias por um mecanismo pouco abrangente improvisado pelo governo), assim como o foram 7 dos mais aguerridos congressistas de oposição; líderes indígenas estão sendo processados por terrorismo e sedição, como já vinha ocorrendo com sindicalistas e lideranças sociais – o que levou o líder máximo da Aidesep, Alberto Pizango, a exilar-se na Nicarágua. Na quinta-feira (11/6), de 20 a 30 mil pessoas, segundo os organizadores, protestaram em Lima, mas o que poderia ter sido o início da reação popular foi reprimido pela polícia com violência.
Cobertura pífia
Dificilmente o leitor teria acesso a todas as informações acima elencadas se restringisse suas leituras à mídia nativa. Mesmo a cobertura da Folha de S.Paulo – o órgão da ‘grande imprensa’ que mais se dedicou do caso, abordado-o em 7 ocasiões desde 6/6 – falha em não fornecer uma contextualização abrangente e em só contrapor, numa mesma edição, os dois lados do conflito quando o entrevistado é da oposição (o militante Javier Diez Canseco em 9/6 e a vice-presidente da Aidesep, Dayse Zapata, em 11/6). Em compensação, na edição dominical, entrevista o ex-chefe de gabinete Jorge del Castillo Gálvez (um dos que tiveram que renunciar sob suspeita de corrupção) e deixa de contestar uma série de deslizes e de afirmações reconhecidamente falsas do congressista da situação, que vão da admissão implícita de que o governo não tem a intenção de consultar todas as comunidades, como manda a lei, à afirmação de que esta não seria vinculante, passando pela asserção – não contestada pelo jornal – de que a Aidesep ‘perdeu legitimidade pela `autoria intelectual´ das mortes de 24 policiais em confronto com manifestantes’.
Em relação ao número de manifestantes mortos, a matéria afirma que na batalha do dia 5 de junho, ‘ao menos 9 civis morreram, mas manifestantes falam em 30’, quando a própria Folha noticiara por duas vezes, nos dias 6 e 9 de junho, que eram 25 os mortos civis, e toda a imprensa internacional, mesmo a mais conservadora, trabalha com números muito maiores (entre 20 e 100 mortos civis), enquanto algumas fontes próximas aos manifestantes chegam a falar em mais de 200 mortos. O que teria feito o jornal mudar de idéia (e de números) e adotar a totalmente desacreditada contagem oficial?
Deve-se lavar em conta, ainda assim, que a cobertura oferecida pela Folha é melhor e mais diversificada, em comparação com seus concorrentes. A real dimensão do projeto de exploração extrativista intensiva da Amazônia, a ameaça que significa às populações indígenas da região e ao meio ambiente e, sobretudo, as sangrentas consequências que gerou têm sido retratadas com notável desleixo pela mídia brasileira – que, como aponta Rafael Fortes, além de usualmente voltar as costas à América Latina, tudo perdoa quando se trata de governos alinhados ao ideário neoliberal.
Será que se Hugo Chávez ou Evo Morales patrocinassem o assassinato de dezenas de indígenas como forma de ocupar comercialmente a Amazônia receberiam o mesmo tratamento?
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog