O sexto aniversário, na quinta-feira (19/3), da invasão do Iraque, cujo custo em vidas americanas já é de 4.259 e em dinheiro passa de US$ 3 trilhões, teve um mérito: sem Bush e Cheney na Casa Branca, a mídia perdeu o medo. Mas isso não nos impede de lembrar o papel vergonhoso dos jornalões, incapazes de ao menos desmascarar a mentira bushista que relacionava o terrorismo do World Trade Center ao Iraque e Saddam Hussein.
Poucos meses antes da guerra, esta coluna perguntou se o 11/9 não tinha derrotado para sempre o jornalismo objetivo nos EUA. E se, sob o impacto da histeria patrioteira desencadeada pela Casa Branca, os veículos da chamada mainstream press, a grande mídia do país, haviam perdido a isenção e a capacidade de discernir. Muita gente fazia perguntas semelhantes ante a timidez dos jornalões e da mídia eletrônica na cobertura dos protestos antiguerra.
A crítica então não era só a veículos de objetividade já duvidosa – como o tablóide New York Post e a rede Fox, do império de Rupert Murdoch, que preferiam demonizar Saddam diariamente como ‘o açougueiro de Bagdá’. Dirigia-se ainda a veículos austeros e liberais, como New York Times e a National Public Radio (NPR, rede pública de rádio), de reputação consagrada pelo passado superior de seu jornalismo.
Na cobertura dos protestos de 26 de outubro de 2002, em especial na capital, os dois foram tímidos. O Times e a NPR inicialmente minimizaram os protestos antiguerra. O jornal dedicou ao fato 500 palavras, na página 8 – e mentiu sobre o comparecimento. Calculou o número de manifestantes, com displicência, em ‘milhares’. E garantiu que até os organizadores esperavam mais gente.
Mentindo no cálculo
Na cobertura do programa All the Things Considered, da NPR, o comentário da jornalista Nancy Marshall, dia 26, foi semelhante à cobertura do jornal. Ela ainda fez um cálculo inteiramente equivocado sobre o número de manifestantes: ‘Não havia tantas pessoas como previam os organizadores do protesto. Eles tinham estimado que umas 100 mil pessoas compareceriam. Eu diria que eram menos de 10 mil.’
Se o total fosse 10 mil pessoas, teria de fato desapontado os organizadores. Mas a estimativa da polícia, do Los Angeles Times, da Califórnia, e do Washington Post, da capital, foi de 100 mil manifestantes. Disse o Post no título da primeira página: ‘100 mil marcham contra a guerra no Iraque’. O texto afirmou ainda que ‘segundo os organizadores e a polícia, pode ter sido o maior protesto antiguerra desde a era do Vietnã’.
O suposto desapontamento dos organizadores foi negado pelos que outros veículos entrevistaram. A organizadora Mara Verheyden-Hilliard, por exemplo, disse o contrário ao Post. ‘A marcha foi muito, extremamente bem sucedida’, afirmou. No dia seguinte, 27, sem se referir ao que dissera na véspera, a NPR veiculou outra notícia, na qual estimou então que havia ‘100 mil manifestantes’.
A cobertura pelo avesso
A organização FAIR (Fairness and Accuracy In Reporting – Precisão e Honestidade na Reportagem), que publica uma revista e faz crítica da mídia sob enfoque liberal, registrou o fato e sugeriu aos assinantes que escrevessem aos veículos. Quarta-feira, 30, a NPR corrigiu: ‘Registramos erradamente sexta-feira que menos de 10 mil pessoas protestaram contra a guerra no Iraque. Havia mais de 100 mil pessoas. Lamentamos o erro’.
O Times, por sua vez, publicou outro texto, também na quarta-feira. Ali deu informações mais completas, inclusive sobre protestos em outros pontos do país. E disse que os organizadores do evento na capital ficaram ‘espantados’, pois tinham pedido licença para protesto de 20 mil pessoas e compareceram 200 mil, segundo eles, ou 100 mil, segundo a polícia – fazendo um muro de duas milhas em volta da Casa Branca.
A revista Editor & Publisher, especializada na cobertura de fatos ligados à mídia, estranhou saírem no Times dois textos contraditórios sobre o mesmo evento. Pediu explicações e obteve resposta da gerente de relações públicas, Kathy Park: ‘Recebemos queixas de grande número de leitores. Achamos que devíamos publicar outra cobertura. E, também a partir do que relataram outros veículos, concluímos que devíamos publicar mais alguma coisa.’
Editor pede desculpas
A segunda matéria do Times, de fato, foi uma reação às queixas enviadas em mais de mil cartas, tanto de assinantes da FAIR como de muitos outros leitores. Não houve nota do editor com retificação formal, mas o jornal julgou conveniente publicar novo texto e enviar resposta assinada pelo editor Bill Borders a cada uma das cartas. ‘Sentimos tê-lo desapontado’, dizia o texto de Borders. E acrescentava:
‘Medir de forma precisa o tamanho de multidões de manifestantes é tarefa quase impossível. Freqüentemente, como nesse caso, não há cálculos objetivos confiáveis.’ O editor defendeu a cobertura que o jornal faz do debate do Iraque e agradeceu cada ativista por ter enviado a carta com a queixa. ‘Agradecemos ter escrito e recebemos bem seu atencioso escrutínio, que nos ajuda a aperfeiçoar o nosso trabalho’, disse.
Editor & Publisher buscou ouvir também a jornalista autora do primeiro texto, publicado a 27 de outubro, para saber como se sentia. Pela reação da repórter Lynette Clemetson, parece que ela fora menos culpada do que os superiores, pois explicou francamente: ‘Advoguei cobertura mais ampla da marcha. Só posso lamentar não termos publicado no dia seguinte uma matéria bem mais abrangente.’
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Jornalista