Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O milagre e o bom jornalismo

Matéria de saúde da edição de domingo (11/9) do Estado de S. Paulo (“Mulheres chipadas preocupam os médicos”) trata do mesmo assunto que foi capa de Veja na semana anterior: fórmulas mágicas de emagrecimento que fascinam as mulheres. Mas que diferença entre as duas! Enquanto Veja só se preocupou em falar do “milagre” do emagrecimento rápido com o uso de um medicamento específico para diabetes tipo 2, o jornal destaca que a “técnica gera efeitos inesperados”, mostra que o “implante custa R$ 4.000,00” e conclui – referindo-se ao uso do remédio recomendado por Veja – que “a Anvisa alerta sobre o uso do antidiabético”.

Em resumo, todos os “que, quem, quando, onde, como e por que” que uma boa matéria deve responder estão lá, destacados nos título e intertítulos.

Tanto a matéria de Veja (ver, neste Observatório, “O milagre da irresponsabilidade“) quanto a do Estadão são obviamente protagonizadas e dirigidas às mulheres. Enquanto a leitora de Veja era induzida a sair correndo e procurar um médico que aplicasse o procedimento, a leitora do Estadão, embora possa ficar seduzida pela foto que mostra uma mulher em ótima forma, vai pensar duas vezes sobre o uso do remédio (o velho conhecido estrógeno, recomendado para mulheres que entraram na menopausa ou querem suspender a menstruação). Mesmo porque, segundo os exemplos dados na matéria, essa febre, por enquanto, é restrita às mulheres que frequentam academias de ginástica.

Como recomenda o bom jornalismo, a autora do texto revela casos bem sucedidos, mas faz questão de mostrar os fracassos, tendo o cuidado de preservar as fontes – usando nomes fictícios, neste caso uma medida justificável, já que essas vítimas da vaidade jamais concordariam em aparecer na mídia oito quilos mais gordas, com a pele feia ou falhas no cabelo.

Uma dose de bom senso

A única coisa que a matéria do Estado de S. Paulo não fez foi discutir o que leva as mulheres a buscar, a qualquer custo, soluções mágicas para ter o corpo que consideram ideal. Mas isso talvez esteja reservado para uma suíte da matéria do domingo (11/9). Em compensação, explicou em detalhes como esses procedimentos mágicos ganham força entre as mulheres:

“A funcionária pública Fernanda Falcão é um bom exemplo da corrente que se forma em torno do uso do chip. Viu uma amiga em boa forma física, resolveu seguir a fórmula e agora inspira colegas da academia de ginástica.”

A matéria mostra também, por meio do depoimento de um dos médicos responsáveis pela aplicação do chip (na verdade, um tubo contendo o medicamento) que o tratamento só vai dar certo se acompanhado de dieta e exercícios. Essa informação, além do preço – publicado pelo jornal, ao contrário de Veja, que não mencionou o custo do seu milagre – vai ser (felizmente) um grande desestímulo para quem já vive fazendo dieta e exercícios. O medo de alguma coisa dar errada – uma das entrevistadas ganhou peso, teve um aumento nos pelos do corpo e a voz engrossou – pode servir para colocar uma dose de bom senso na cabeça das possíveis candidatas.

Revista diz que não errou

Enquanto isso, em Veja a seção de cartas foi toda dedicada à matéria sobre o remédio milagroso, o assunto mais comentado da semana, segundo a revista. Entre as cartas selecionadas, duas leitoras se declararam “exultantes” ou “eufóricas” com a notícia, porém decepcionadas quando, ao chegar à farmácia, descobriram o preço do medicamento. Além do desapontamento, as leitoras revelaram – embora a revista não tenha destacado o fato – que basta ter dinheiro para ir a qualquer farmácia e comprar seu milagre sem receita médica.

Dois médicos recomendam cuidado com o uso do medicamento. Um deles, Geraldo Santana, diretor do Instituto Mineiro de Endocrinologia, diz:

“É fundamental destacar que se trata de uma medicação nova e que, portanto, exige seleção criteriosa dos pacientes, com acompanhamento clínico e laboratorial frequente. Só assim será possível surpreender efeitos colaterais não identificados nos estudos, mas que podem surgir após seu uso em larga escala, como já ocorreu com outros medicamentos para obesidade.”

Sem mencionar o alerta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (a Anvisa), emitido durante a semana (portanto, a tempo de pegar o fechamento da edição), a revista encerra a página com uma carta de leitora, ilustrada por foto, reforçando os efeitos milagrosos do remédio. Ou seja, a revista faz questão de dizer que não errou. Insiste na mensagem favorável ao produto e esquece, outra vez, sua obrigação de bem informar seus leitores.

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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]