Tudo bem, o presidente falou, a frase dá manchete, mas que diabos quis dizer? Essa deveria ter sido a pergunta de todo editor de Economia, depois da autocrítica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira entrevista coletiva, no dia 29 de abril. Foi um erro, segundo ele, deixar o combate à inflação depender excessivamente da política de juros. ‘Assim’, disse Lula, ‘nós passamos muita responsabilidade para o Banco Central e tiramos a responsabilidade das costas do governo e das costas da sociedade.’
A autocrítica foi o grande assunto das primeiras páginas no dia seguinte, mas a informação mais importante foi escassa na maior parte dos jornais. A frase do presidente poderia ser o prenúncio de uma virada na política econômica. Ao falar em erro, ele havia admitido, implicitamente, haver pelo menos uma solução melhor. Admita-se: ele nem sempre é lógico e nem sempre pesa o que diz, mas valia a pena investir mais no assunto.
Não se resolveria a questão procurando economistas do setor privado ou da universidade, a menos que algum deles tivesse uma informação de cocheira sobre novos planos de governo. Seria fácil prever que os mais articulados coincidiriam pelo menos num ponto: o caminho mais seguro para uma política de juros mais frouxa seria uma política fiscal mais dura. Alguns economistas, como Yoshiaki Nakano e Delfim Netto, têm proposto que o governo elimine todo o déficit fiscal, em vez de se contentar com superávits primários que só amenizam o problema.
Aperto fiscal foi a resposta mais consistente dos economistas ouvidos naquele dia. Alguns poderiam mencionar outros pontos, como a revisão dos contratos que regulam a indexação de tarifas. Alguém poderia mencionar a abertura total das importações de aço e outras providências desse tipo, mas seriam, em geral, medidas periféricas e até perigosas. De toda forma, o mais importante, naquela altura, não seria saber o que pensavam os economistas do setor privado ou da academia, mas o que ocorria no governo – se é que algo ocorria.
Contratos de concessão
Também se sabia que algumas pessoas no Ministério da Fazenda vinham defendendo um superávit primário superior ao programado oficialmente. O compromisso explícito ainda é obter um resultado primário, aquele calculado sem a conta de juros, equivalente a 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). No ano passado, o superávit foi revisto para 4,5% e acabou chegando a 4,6%.
A idéia de ir novamente além da meta oficial foi discutida em Brasília, há algum tempo, mas não colou. Há muito ministro chorando por mais dinheiro. Teria o presidente concordado, afinal, com os defensores de um aperto maior? Estaria antecipando uma revelação, ou, talvez, sofrendo mais um escorregão e contando um segredo?
Todos os telejornais mostrariam a autocrítica de Lula naquela noite. No fim do jantar, todo o público estaria informado pelo menos da insatisfação do presidente com a política de combate à inflação. Todos saberiam, também, que o presidente, na entrevista, havia descartado um mero afrouxamento da política monetária. E daí?
A manchete ideal para o dia seguinte não seria a autocrítica, mas a revelação do próximo lance. Mesmo que isso não fosse possível, pelo menos a indicação de uma boa pista seria um prêmio para os leitores.
Nos dias seguintes, todos chegaram ao que parecia a resposta mais provável: o governo busca meios para renegociar os contratos de concessão e mudar as fórmulas de reajuste de tarifas. Uns poucos foram mais velozes.
Maldição da repercussão
Na edição de sábado (30/4), o Globo apresentou uma grande cobertura da entrevista, mas passou longe da possível solução do mistério. O Estado de S.Paulo mencionou a novidade numa pequena matéria de uma coluna, publicada no pé da página 7 do primeiro caderno, longe da matéria principal da entrevista. O texto foi redigido com cautela: ‘No mesmo dia em que o presidente Lula disse que sua equipe procura alternativas às altas taxas de juros para conter a inflação, o governo anunciou que quer definir índices de reajustes de tarifas setoriais que se aproximem mais dos custos das empresas’. O jornal deu maior destaque às opiniões dos economistas entrevistados.
A Folha de S.Paulo foi mais direta no tratamento do assunto, apresentado como manchete do caderno Dinheiro. A matéria, assinada por Kennedy Alencar e Humberto Medina, lembrou que o presidente havia mencionado, na entrevista, as dificuldades para discutir a revisão dos acordos sem romper as regras do jogo. ‘Após a entrevista’, contaram os repórteres, ‘a Folha perguntou a um membro da cúpula do governo se a declaração presidencial já refletia medidas em estudo nos bastidores que o governo preferia manter em segredo’. O jornal apurou, segundo a matéria, que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ‘normalmente reticente em relação a medidas que possam desagradar ao mercado, já opera nos bastidores por determinação de Lula (…) A idéia do governo é combater a inflação provocada pelos chamados preços administrados’.
É muito cômodo escrever, depois de confirmada total ou parcialmente uma informação, que alguém errou ou acertou ao ser audacioso ou cauteloso no tratamento da primeira notícia. De modo geral, a cautela é a melhor atitude para quem valoriza mais a precisão do que o furo. Mas a diferença, neste caso, não parece ter sido apenas uma questão de maior ou menor ousadia. Acertaram todos os que noticiaram a intenção do governo de renegociar os contratos. Mas quem foi atrás da ligação entre a novidade e o discurso do presidente ofereceu algo mais ao leitor. Nesse caso, mais importante do que buscar a opinião de economistas e de empresários era consultar fontes do governo. Quem seguiu esse caminho obteve a melhor colheita.
Num jornalismo dominado cada vez mais pela maldição da repercussão e pelo empenho em noticiar declarações, comprovou-se, ainda uma vez, que o melhor serviço é ir atrás dos fatos.
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Jornalista