Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O neoliberal anti-Lula

Mac Margolis, correspondente de Newsweek no Brasil há mais de 25 anos, é tido como competente mas seu trabalho talvez seja afetado por ligações próximas com a oposição do PSDB. Mesmo com o mérito de nunca ter descido ao nível de um Larry Rohter, deixou-se conquistar pela rendição do governo FHC ao neoliberalismo econômico, ainda hoje a referência maior do jornalismo dele.

Como profissional experiente da mídia corporativa, Margolis frequenta nossa elite branca e teve acesso privilegiado ao governo anterior e seus ministros. Um destes, Roberto Muylaert, à época em que deixou a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, passou a tê-lo como colaborador fixo em publicação largamente contemplada pela publicidade oficial. Além dessas relações, identificava-se com a política de privatizações e seu patrocinador FHC.

Agora, no entanto, um ativo crítico de mídia dos EUA – Peter Hart, da revista Extra!, publicada pela organização FAIR (Fairness & Accuracy in Media – Honestidade e Precisão na Mídia) – submeteu o trabalho de Margolis, tão prodigamente premiado aqui pelo alinhamento ao neoliberalismo e até ao Consenso de Washington, a análise séria e rigorosa. E com uma visão de esquerda.

O resultado foi uma crítica demolidora – apesar de Hart, aparentemente, nada saber sobre a intimidade promíscua de Margolis com os ressentidos ex-detentores do poder no Brasil, alijados pelo voto popular depois da compra de votos no Congresso que permitiu a reeleição em 1998. A análise na Extra! deu-se ao trabalho de cotejar os textos do correspondente nos últimos anos.

Consenso de Washington salvou o Brasil?

Se a crítica ao menos tornar o jornalista de Newsweek mais cuidadoso já terá valido a pena: ele estava acostumado demais aos encômios ouvidos dos tucanos. Ao contrário de Merval Pereira, que recebeu o prêmio Moors Cabot em 2009 (a pretexto de ter ‘combatido valentemente a ditadura militar’, coisa que seu jornal na verdade nunca fez), Margolis pode até ter merecido o mesmo prêmio em 2003 por razões sólidas.

O correspondente tiraria proveito das críticas se tentasse distanciar-se mais dos aduladores tucanos – sempre à procura de jornalistas estrangeiros para convencê-los (em inglês: odeiam falar português) sobre méritos do governo FHC, que encaram como injustiçado. Ao exaltarem, por exemplo, a onda de privatizações selvagens, só teriam um ponto: foi ruim para o país, mas as comissões eram polpudas.

Na reportagem de capa de Extra!, Hart é minucioso na análise dos textos de Margolis no período dos dois mandatos do presidente Lula. Expõe seu caráter tendencioso e preconceituoso – sempre na linha neoliberal que certamente soava como música aos ouvidos dos editores em Nova York. Chega ao extremo de afirmar, com todas as letras, que o Brasil foi salvo pelo Consenso de Washington.

O antetítulo do texto (‘Meet Mac Margolis, their man in Latin America’ – Conheça Mac Margolis, o homem deles na América Latina), é seguido pelo título em corpo maior, ‘Newsweek´s Name-Calling Neoliberal’ – O neoliberal desbocado da Newsweek. A ilustração principal é uma capa-paródia da revista com a caricatura de Hugo Chávez à frente dos três que seriam seus inspiradores: Hitler, Mussolini e Stalin. Título: ‘Difamando a esquerda da América Latina’.

Será Oliver Stone a Riefenstahl de Chávez?

Quem comparou Chávez a três ditadores de uma vez foi Margolis, induzido pela própria inclinação ideológica, numa reportagem leviana publicada a 2 de novembro. Ali fazia piadas sobre a criação na Venezuela de uma produtora pública de cinema, com estúdio e tudo: ‘Como Mussolini e Stalin antes, o presidente Chávez criou seu próprio estúdio de cinema’. O objetivo, sugeriu, é a propaganda deslavada.

Escreveu ainda o correspondente em novembro:

‘Como os autocratas do século 20 que procura imitar, Chávez é fascinado pelo poder do cinema. Desde que Hitler voltou-se para Leni Riefenstahl os ditadores têm sonhado em ganhar a força épica da tela grande para seu script político. Com a Villa del Cine, posicionou-se, conscientemente ou não, como herdeiro dos totalitários maiores do século 20’.

Para Hart, não há muitas evidências de que as instalações de edição e os estúdios da Villa del Cine são passos iniciais rumo ao fascismo. Se fossem, observou ainda, o National Film Board do Canadá já teria há muito tempo empurrado esse país vizinho dos EUA para o Gulag. Mas Margolis prefere carregar nas tintas contra Chávez, crítico feroz do neoliberalismo e da retórica submissa ao poder das corporações.

Em plena crise financeira que golpeou o mundo graças à irresponsabilidade de Wall Street e dos bancos que criaram a bolha imobiliária, Margolis continuava fiel, em julho de 2009, ao desastroso rumo neoliberal. Escreveu: ‘Apesar do Consenso de Washington ter salvado sua economia, o Brasil hoje tenta enterrar a agenda ‘neoliberal’ das reformas de mercado, que nos anos 1990 impulsionaram os países em desenvolvimento’.

A afirmação é ainda mais insólita se for levado em conta o sucesso do governo Lula naqueles dias, a ponto de tornar o Brasil o primeiro país a sair da crise. Mas Margolis reclama mais privatizações. E acrescenta: ‘Não é a América Latina que precisa ser resgatada nos destroços das reformas de mercado. São as reformas que precisam ser resgatadas na América Latina’.

‘Esses latinos contra o livre comércio?’

Hart registra com sarcasmo a enorme arrogância do comentário, que beira a desfaçatez. E sugere o que passa pela cabeça de Margolis – ‘Esses latinos babacas acham que vão desacreditar o livre mercado?’. Na tentativa de explicar que o Consenso de Washington funcionou, disse Hart, não eram as reformas de mercado que tinham precisado de socorro. Assim o próprio Margolis escrevera em junho:

‘Uma das explicações (…) para a atual trapalhada na América Latina tem como alvo o evangelho das reformas de livre mercado pregadas na década de 1990 pelos pundits em Washington e `magos´ em Wall Street. Críticos do chamado Consenso de Washington argumentam que os frutos da estabilidade deixaram de alcançar as massas. Ao arranharem a superfície, o quadro pareceu mais complexo.

‘Através da América Latina, a mortalidade infantil tinha caído drasticamente, enquanto a alfabetização e a expectativa de vida tinham chegado às alturas, até na empobrecida Bolívia. Matrículas em escolas primárias e acesso à água potável e à eletricidade estão subindo. Mais cidadãos envolvem-se agora na política do que em qualquer época: indígenas já constituem 30% do Congresso boliviano.’

Para Hart, Margolis não viu necessidade de explicar a relação de causa e efeito entre as políticas econômicas neoliberais que ele apóia e a melhoria das condições de vida. Isso por achar a conexão auto-explicativa. Um sociólogo que tinha trabalhado na Bolívia, no entanto, discordou. Disse em carta à revista que muitos avanços resultaram de ações do governo – o oposto do que prega o ‘Consenso’, que exige austeridade orçamentária e mais privatizações.

Um populismo de talão de cheque?

No caso particular do Brasil, as avaliações equivocadas de Margolis parecem até tradução para o inglês daquilo que nossa grande mídia obstina-se em repetir em português. Às vezes Lula ganha elogio dele – mas só quando suas políticas parecem, por exemplo, favorecer os investidores de petróleo e o capitalismo global. ‘Lula não é Hugo Chávez’, chegou a dizer. Mas, de repente, ele volta ao ataque: ‘Lula dá guinada à esquerda’.

A suspeita de ‘populismo’, tão cara a FHC e seu Cebrap, sempre reaparece. ‘Com um olho na posteridade e outro na urna’, provocou. ‘Exatamente o tipo de armadilha populista que Lula tinha evitado até agora’, escreveu. O repúdio aos programas sociais que o neoliberalismo odeia também é recorrente. ‘Populismo de talão de cheque’, sentenciou. Hart estranhou tudo isso, lembrando como o Brasil saiu bem da crise.

Números e dados de Margolis nem sempre são confiáveis. ‘Quase 63% de jovens latinos dizem agora que o livre mercado beneficia todas as pessoas’, escreveu. Mas Hart explicou e corrigiu: ‘A pesquisa foi pela internet, a que só tinham acesso 31% da população; e mesmo assim Margolis não notou que nela sua tese era desmentida por 90%, favoráveis a que os governos façam mais para ajudar os pobres’.

No final, mais um escorregão de Margolis. Ele vê o continente às vésperas de uma virada à direita com as eleições dos próximos 17 meses no Brasil, Uruguai e Chile: ‘Em nenhum dos três países o partido de esquerda no poder é cotado para ganhar’. A realidade já o desmente. A esquerda ganhou no Uruguai e foi para o segundo turno no Chile, enquanto no Brasil Serra hesita em ser candidato, com medo de perder outra vez para a esquerda.

Restaria, enfim, lembrar que Newsweek incluiu Lula, há um ano, no 18° lugar da lista (encabeçada por Barack Obama) das 50 pessoas mais poderosas do mundo, o que chamou de ‘Elite Global’. Só não entendo porque os editores encomendam a Margolis textos sobre Lula: ele sempre dá um jeito de enfiar FHC, que quebrou o Brasil três vezes, como ‘o grande reformista’.

Quanto à Extra!, esse número de janeiro está à venda há poucos dias. O site da FAIR inclui algumas matérias, mas não a da capa, escrita por Hart. A assinatura anual (12 números de 16 páginas) da edição eletrônica em pdf custa US$15.

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Jornalista