A semana passada, dada a variedade da agenda tanto local quanto internacional, foi crivada de eventos que mantiveram a atividade jornalística bastante mobilizada. Nenhum jornalista terá tido crises de pauta. Atentados, desfiles exóticos, fóruns, a celeuma gerada por mais uma gaiatice do correspondente do New York Times, Larry Rohter, e, por fim, ‘eleições’ (?) no Iraque.
Observando a diversidade do temário, fica inicialmente a idéia de que realmente é fascinante o exercício da prática jornalística. Por outro lado, não menos evidente se revela quão difícil é exercê-la para quem não abdica da construção de um olhar crítico. No passado, a frase anterior seria sumariamente rotulada (e com toda razão) de ‘redundante’. Os mais antigos na profissão bem sabem que, em sendo jornalista, obrigatoriamente haverá de desenvolver a criticidade. Todavia, já há algum tempo, o panorama se modificou – o que, na atualidade, retira da frase qualquer resíduo de redundância.
Os temas mencionados no limiar deste artigo, sob o crivo de um jornalismo crítico, facilmente seriam transformados em matérias humorísticas ou irônicas. Contudo, no padrão jornalístico dominante, tudo é tratado com a mais devida objetividade e seriedade. Tudo é registrado com a decantada isenção, a fim de passar ao leitor a ‘realidade’ dos fatos.
Mero verniz
Para início, destacamos a matéria de capa da revista Veja da semana passada (edição 1.889, de 26/1/05 ): ‘O PT deixou o Brasil mais burro?’.
A despeito do tom quase rancoroso que a reportagem contém contra o atual governo, não se pode deixar de reconhecer a eficácia crítica oferecida ao leitor, com base em competente mapeamento acerca das inúmeras distorções que habitam o cenário nacional. Pelo menos, os editores tiveram o cuidado de incluir a palavra ‘mais’, deixando, pois, clara a idéia de que a ‘burrice’ já existia e terá sido intensificada.
Até aí, este articulista não tem objeção alguma a fazer. Quem acompanha os passos da vida brasileira, destituído de contaminações ufanistas e expectativas salvacionistas, bem sabe quanto, culturalmente, no precipício temos descido. A alturas tantas da reportagem que se desdobra em várias matérias de diferentes jornalistas, há o depoimento de Roberto Romano, professor de Filosofia da Unicamp. Afirma ele:
‘O governo Lula é uma misologocracia. Platão criou o neologismo ‘misólogo’ para definir aquele que é inimigo da cultura, que tem ódio às idéias. Eu defino esse governo como uma ‘misologocracia’, pois tem uma atuação inimiga do estudo, dos laboratórios e de tudo o que possa produzir cultura. Como eles não entendem e não se dispõem a aprender, preferem controlar os meios culturais’.
Romano não está equivocado no recorte formulado. Há visíveis sinais e procedimentos administrativos que apontam na direção do que sentenciou. O que está sendo proposto como ‘reforma universitária’ é de estarrecer, principalmente quanto às inevitáveis conseqüências, entre as quais se avizinham o completo sucateamento da esfera pública e o asfixiamento da rede particular, afora o fatiamento de percentuais por conta das ‘salvíficas’ cotas que, em detrimento do mérito intelectual, deverão contemplar os ‘excluídos’.
Somente no reino das sandices, em lugar de ampliar o número de vagas, subtrai-se o contingente dos mais qualificados. Os que têm compromisso com a real esfera da qualificação intelectual sabem que com o conhecimento não se faz demagogia social (sem pagar-se, por isso, alto preço).
Conhecimento exige construção sólida que se viabiliza em processo alongado. Ao mascarar-se a solidez, o que fica à mostra não passa de mero verniz a estalar sob o impacto da primeira rajada de sol. Essa é a descaracterização promovida pelo Estado que, avesso à meritocracia, aposta na misologocracia, sob a falsa (ou ingênua) defesa da ‘democratização’ da universidade.
Como levar a sério?
Enfim, a reportagem da Veja praticamente não peca em nada do que registrou. Sua falta (e não menos grave) reside na omissão – ou esquecimento?; ou, quem sabe, silêncio corporativista?
A falta mencionada diz respeito à expressiva contribuição que a mídia brasileira, nas últimas décadas, deu ao processo de abastardamento cultural da nação. A mídia, seja impressa, seja eletrônica, não economizou esforços no sentido de multiplicar fórmulas estimuladoras da banalidade, esquecendo-se de ser ela a primeira a dar destaque e visibilidade a tudo que representa inversão de valores.
É cômodo autenticar-se o declínio vertiginoso, retirando-se da frente do espelho. Que dizer, por exemplo, da mais recente edição do Big Brother Brasil, no qual, entre seus selecionados, figuram médico de carreira e professor universitário (com mestrado concluído) para fazerem e dizerem o que fazem e dizem?
Será que a performance deles é compatível com as profissões que exercem? Se a resposta for afirmativa, já estamos no fundo do poço. É a mídia que, em âmbito nacional, diariamente formata exemplos. É esse o tipo de ‘universitário’ que a sociedade patrocina? É bom que a revista Veja comece a desconfiar de que as orelhas de burro estampadas na capa abrigam bem mais do que ela deu a conhecer.
Ao aludir, no início do artigo, às dificuldades do jornalismo por quem é portador de massa crítica, entre tantos exemplos, tinha em mente profissionais cuja missão foi a de cobrir os dois fóruns mundiais: o social de Porto Alegre e o econômico de Davos. Outra pauta ingrata que, exigindo tratamento sério, melhor afeita estaria para tons jocosos. Como levar a sério os dois eventos?
Um caso a repetir-se
No primeiro (o social), o messianismo ‘intelectual’ debruçado sobre a miséria do mundo, regado a madrugadas de festança e esbórnia. No dia seguinte, a rapaziada, em clima de ressaca, assiste a exposições de ‘profundos estudos’ para a construção de um ‘novo mundo’.
No segundo (o econômico), renomadas figuras da política mundial, em meio a ícones do show business (cantores de rock e atrizes), tratam da pobreza que eles próprios produzem, regados a requintes de sofisticação, a começar pela excelsa paisagem dos Alpes suíços.
Tudo, porém, é informado com a mais absoluta seriedade. O leitor que trate, se educado para tanto o foi, de perceber o lado irônico da realidade e, assim, poder proteger-se da neutralidade midiática.
Finda mais uma edição de cada fórum, constata-se que o mundo continua a seguir sua marcha. Quem ganha é quem ficou na vitrine, fez a cena, ampliou seu currículo,– ou, como platéia, viveu novas experiências, conheceu diferentes pessoas, criou novas redes. E assim caminha a humanidade (isto cheira a filme).
Bem ou mal, o evento sobre a miséria rende a circulação de 134 milhões de reais. É um bom negócio. Nos Alpes, a estrela Sharon Stone dá sua contribuição de 10 mil dólares e, ao final, por constrangimento dos demais, ou por mais um gesto de caridade, faz render a coleta de 1 milhão de dólares para o combate da malária na Tanzânia; enquanto nosso presidente, na sua desmedida egolatria, conforme destacava a Folha de S. Paulo (28/1/05), tanto confunde Menem com Kirchner quanto, a exemplo do que estampou O Globo (27/1/05), credita a si o perfil temático do fórum de Davos: ‘Mudei a agenda de Davos’.
Talvez, e isso a imprensa oficial também não aborda, um dia alguém explique ao otimista presidente que as forças conservadoras sempre se apropriaram das bandeiras propostas pelas forças progressistas. Este é apenas mais um caso a repetir-se. É o mesmo processo que, em alguns circunstâncias, inversamente se dá – ou seja, forças progressistas acabam absorvendo as lições das forças conservadoras.
Simples, não é?
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro