Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O papel (feio) da imprensa italiana no plebiscito de junho

Enquanto a Itália esboça reação ao efeito devastador de duas décadas de Berlusconi, seu jornalismo personalista engessado insiste em olhar para o outro lado, tratando de crimes, levando avante seus formatos desgastados e zero padrão de qualidade. Apouquíssimos dias do plebiscito que vetou as usinas nucleares, a privatização da água e que agora obriga Sílvio Berlusconi a comparecer aos tribunais, a mídia italiana já se comporta como se nada tivesse acontecido. À parte a oposição, que sonha transformar o plebiscito em votos, espalhando cartazes com: “Obrigado, eleitores”, como se a vitória fosse obra sua, a coisa toda seria considerada não como de importância social na história da Itália, mas que deve ser minimizada e quase desdenhada. Mas isso vem da imposição política ou por opção editorial?

Segunda-feira (13/6), no encerramento das apurações, a meia dúzia de políticos de sempre ocupava os estúdios da estatal RAI para opinar. Da praça, na festa transmitida ao vivo – coisa rara, nas TVs italianas –, os comitês já protestavam, e muito. Desde o início da campanha, as chamadas oficiais para o plebiscito entravam em horários irregulares, ou de madrugada. Os âncoras do noticiário mais visto erravam constantemente a data do plebiscito – segundo algumas hipóteses, era de propósito. Seria em junho ou julho? Dias 12 e 13 ou 13 e 14? Ou isso, ou ignorar completamente o plebiscito, apresentando por horas a fio hipóteses absurdas e a reconstituição de crimes alucinantes, um atrás do outro, seja nos canais de Berlusconi, seja nos canais estatais.

Esquerda pouco tinha se manifestado

O governo, por sua vez, fez diversas manobras, inclusive junto ao Judiciário, para que ele não ocorresse. Lideranças do governo declaravam a abstenção. O próprio primeiro-ministro disse aos italianos que fossem à praia nos dias de votação. Enquanto isso, diversos comitês, nascidos espontaneamente nos bairros, entre estudantes, donas de casa e grupos pequenos, passaram meses recolhendo assinaturas, organizando festas, debates e panfletagem. Entidades como Greenpeace e WWF se juntaram a eles e a grupos formados nas redes sociais, engajando suas assessorias de imprensa e de marketing à campanha dos “quatro sim”. Já que a imprensa não falava do plebiscito, o objetivo era criar fatos impossíveis de se ignorar, como quando free climbers do Greenpeace penduraram uma faixa de metros contra as usinas nucleares no meio da final da Copa Itália entre Inter e Palermo, em Roma, ação que lhes rendeu expulsão do estádio Olímpico por três anos.

Num momento em que o jornalismo italiano perde terreno e credibilidade para a mídia digital, mesmo (e principalmente) o que é alternativo obtém mais resultados sociais e de público do que os formatos engessados e personalistas locais. Para divulgar o plebiscito, valeu trancar-se em casa, por dias seguidos, divulgando vídeos pela internet, para convencer os indecisos, e apelar para o megafone do caminhãozinho do amolador de facas, que circula por Roma, no melhor estilo “pamonhas, pamonhas, pamonhas”: “Senhoras, nos dias 12 e 13, votem sim contra ações da água na bolsa de valores.”

Já na festa da vitória, o empenho cívico deu lugar à raiva de ter trabalhado tanto sem dispor recursos, sob censura e arriscando a prisão para ver, depois, a vitória atribuída aos insossos partidos de esquerda. Estes, até começarem a ver que a coisa ia pra frente através da mobilização popular, pouco tinham se manifestado a respeito. O Partido Democrático, por exemplo, tinha se preparado para um debate com o governo sobre a energia nuclear “limpa”. A discussão, que não houve, compreendeu uma caríssima campanha de marketing de uma agência publicitária de peso, jogada no lixo logo depois do acidente nuclear de Fukushima. Além disso, o líder populista de um dos partidos que reivindicam a vitória no plebiscito privatizou, ele mesmo, a água de sua região.

A roda de políticos de sempre

Da praça, o jovem assessor de imprensa dos comitês populares agradece aos jornalistas de credibilidade e peso por terem convidado a seus programas os manjados políticos de sempre, durante a campanha. É ironia, claro. Depois, ele agradece aos voluntários que afixaram cartazes e distribuíram panfletos pelas cidades. Foi durante esse trabalho que se veio a saber que em Milão, por exemplo, o monopólio dos outdoors e mídias afins está nas mãos do filho de Marcello Dell´Utri, chefão da publicidade na Itália, caro amigo de Berlusconi, processado e surpreendentemente absolvido diversas vezes por diversos crimes. Em Milão, não se cola um único cartaz sem que se passe por relações mafiosas. Já na reta final da campanha, temia-se que o quórum do referendo não fosse alcançado. Um empresário de Milão liga para o comitê popular, em Roma, furioso: “Alguém tem que deter esses bandidos. Quero ajudar, temos que acabar com Berlusconi.”

Justiça seja feita, da praça partiram agradecimentos também ao papa que, ultimamente, andou ganhando pontos com os movimentos sociais: não atacou o Gay Pride Europeu ocorrido na véspera do plebiscito, recebeu e abençoou roms e ciganos bem nas barbas da base aliada xenófoba do governo e, por fim, contrariamente a Berlusconi, que tinha dito aos italianos para irem à praia, Ratzinger incentivou os fiéis a irem às urnas, dando até indicação de voto: “Devemos escolher energias que protejam o patrimônio da Criação.”

Votação encerrada, resultados divulgados, voltamos ao link da RAI da transmissão ao vivo das comemorações. A jornalista, por ser filha de um carismático líder do velho Partido Comunista, acredita que não pode ter suas boas intenções contestadas pelos movimentos sociais. Como sempre, chamou para o debate a mesma roda de políticos, aqueles que reclamam a paternidade da vitória no plebiscito.

Não se sabe que tipo de problema técnico dificulta e quase impossibilita as entradas ao vivo, na Itália, como já foi dito. Mas dessa vez se consegue entrar da praça para ouvir o assessor dos comitês. A apresentadora, talvez já informada que, ali, o pessoal não estava mais a fim de participar daquele circo desgastado, já vai atacando: “O que você quer? Ninguém aqui está dizendo que a vitória não é de vocês.” “Esses políticos no estúdio não nos representam”, ele responde. E a âncora: “Então vamos desligar os microfones e decidimos que fala quem a gente quiser, não são vocês que vão autorizar.” É lamentável.

Não importa se se trata do New York Times, da Reuters BBC ou do jornalismo praticado no Brasil. Os modelos existem para serem constantemente discutidos, sem ingenuidade. Por isso mesmo é que dá pena perceber que o jornalismo italiano não corresponde ao período particular vivido na Itália. O mérito de tudo o que tem andado avante no país deve-se à iniciativa popular e à garotada, que faz de tudo e mais um pouco na web.

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[Solange Cavalcante é jornalista, baseada em Roma]