Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O pedaço mais visível do lodaçal

Sem medo de ser censurada, a Folha de S.Paulo continuou no domingo (25/10) a desafiar o Superior Tribunal de Justiça de Brasília com a publicação de novos trechos dos relatórios da Polícia Federal sobre o tráfico de influência praticado em nome do senador José Sarney por seu filho Fernando.


A matéria ganhou grande destaque nas páginas internas, mas não chegou à capa – talvez por falta de espaço. Independente do motivo da omissão, vale lembrar que tráfico de influência é um ilícito penal e moral. Inclui-se no âmbito da prevaricação e da corrupção. Vale lembrar também que o formidável poder do crime organizado que hoje ganha as primeiras páginas da imprensa mundial resulta da leniência da sociedade brasileira para com a pequena delinqüência.


A troca de favores, o nepotismo, o superfaturamento, as propinas, o suborno direto ou indireto tornaram-se tão corriqueiros que já não incomodam as autoridades nem indignam os cidadãos.Mas esta rede de indulgências é uma das responsáveis pela sublevação do narcoterrorismo no Rio de Janeiro.


A metralhadora que derrubou o helicóptero da polícia não foi fabricada no Rio. Veio do Paraguai, da Bolívia ou do Suriname. Não foi importada; foi contrabandeada e o contrabando só existe quando não há fiscalização nas fronteiras ou quando a fiscalização é exercida por comparsas dos criminosos.


É evidente que a família Sarney não está implicada no circuito de delitos que começa num país vizinho e chega ao Morro dos Macacos, em Vila Isabel. Mas salta aos olhos a intensa interatividade entre os diferentes estágios e tipos de delinqüência infiltrados em nossa vida pública.


O Rio de Janeiro não é a capital do crime. A Cidade Maravilhosa é apenas o pedaço mais visível do lodaçal que corre nos subterrâneos do país.


Coalizão de ilicitudes


Na entrevista que concedeu ao repórter Kennedy Alencar, da Folha de S.Paulo, o presidente Lula declarou taxativamente que a manutenção de José Sarney na presidência do Senado é uma questão de segurança institucional. Não reparou que a blindagem oferecida pelo Executivo a um chefe do Legislativo bombardeado por tantas denúncias é um formidável estímulo ao sistema de bandalheiras conjugadas que converteu a sociedade cordial numa das comunidades mais ferozes do mundo.


O tráfico de drogas pesadas é hoje uma atividade secundária do chamado crime organizado. O crack é infinitamente mais barato, mais ‘democrático’, produz mais danos, produz maior dependência e não exige um aparato logístico tão complicado como o comércio da cocaína ou mesmo da maconha.


O ‘modelo de negócio’ do crime organizado envolve hoje um feixe atividades diversificadas, paralelas, menos arriscadas, como transporte público na periferia, distribuição de gás, acesso à TV a cabo e, principalmente, segurança.


As milícias, como negócio, são extremamente rentáveis: o cidadão que aceita pagar 30 reais mensais pela proteção da sua casa ou comércio torna-se cliente vitalício: se romper o acerto, está liquidado.


Não adianta ir à delegacia para reclamar: alguns policiais têm ‘bicos’ nas milícias ou trabalham para empresas de segurança que servem aos figurões da República, do estado ou do município. O ramo da segurança privada é um dos melhores negócios do país porque está conectado àqueles que produzem insegurança. Seus interesses conflitam apenas na aparência, ambos estão sempre no lucro. A fortuna e o poder do deputado-castelão Edmar Moreira (sem partido- MG) são exemplos da grande coalizão de ilicitudes que domina e degrada o país.


Mais charme


A imprensa trata a violência de forma fragmentada, atormentada pela incrível sucessão de ocorrências, sem tempo, sem espaço, sem recursos ou estímulos para investigações de fôlego. Por isso não consegue buscar os elos entre o helicóptero abatido pelos bandidos e o assassinato do ativista Evandro João da Silva, do AfroReggae, nas barbas de um capitão da PM que ainda ficou com seus pertences. Não se trata de uma conexão factual, concreta, mas de um encadeamento mais sutil e cujo ponto de partida não é propriamente a impunidade; é a certeza de que a impunidade será obtida graças à corrupção dos agentes públicos em todos os escalões.


Ao examinar a cobertura da luta contra o narcoterrorismo no Rio é preciso levar em conta que grande parte da mídia brasileira está situada a quase 500 quilômetros de distância.


Os quatro semanários e dois dos três jornalões nacionais estão sediados em São Paulo e os mirrados cadernos onde publicam a cobertura da violência são destinados aos assuntos ditos urbanos.


Depois dos acontecimentos no Morro dos Macacos, não sobra espaço para noticiar a violência local, mesmo porque os dois jornalões estão empenhados há anos na disputa pela hegemonia no campo político. A cobertura ‘policial’ é subproduto, ganha a primeira página quando acontece no Rio porque tudo no Rio tem mais charme, inclusive as tragédias.