Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O planeta está com febre alta

Se o leitor estiver entre aqueles com sentimento de culpa por tomar um banho quente, temeroso de consumir energia e contribuir para o aquecimento global, aqui vai uma sugestão: relaxe.

Relaxe porque o problema é muito maior que sugere uma preocupação meramente pessoal e não tem como ser resolvido de maneira simplista. Relaxe, mas não se omita nem se aliene. Essa talvez seja uma sugestão mais razoável. E relaxe especialmente porque, por trás das manchetes garrafais das edições dos jornais de sábado (3/2), há uma boa dose de sadismo, coisa que, com freqüência maior do que estamos dispostos a acreditar, transborda das redações para as edições diárias. E nos pegam logo no café da manhã, a cada santo dia.

Na versão sádica dos jornais – com contribuição e endosso de economistas – as coisas dão errado até quando dão certo. Imaginem se já começam complicadas.

Aquecimento planetário

No caso do aquecimento global, assunto que ocupou as manchetes das edições do sábado em todas as redações do mundo, aqui – ao menos em parte – o sadismo se explica pelo fato de parcela dos leitores ter sido tomada de surpresa. ‘Mas o negócio é tão feio assim?’, disseram, com esta frase ou o equivalente dela.

‘É feio sim’, pode-se concordar. E se parcela dos leitores não sabia disso é porque o jornal que lêem não os informou. O que significa dizer que certos jornais, além de não embrulharem mais peixe nas feiras livres, também não servem para informar seus leitores.

Desde o primeiro encontro para discutir mudanças climáticas – organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Berlim, em 1994 – as modelagens sugerem a essência do que foi dito no relatório divulgado na sexta-feira (2/2), em Paris, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), com 2.500 climatologistas de 130 países.

Diretores de jornais mais apegados à memória que à inteligência, em parceria involuntária com repórteres encantados com o próprio umbigo, no entanto, sustentaram durante boa parte deste tempo a versão que o aquecimento seria um processo natural. E como quem enxerga fantasmas durante o dia, deram conotação ideológica a esta interpretação, o mesmo que fez George W. Bush.

Cultura científica

Aqui aparece, com toda clareza, a necessidade de os jornais terem seus suplementos semanais de ciência. Vivemos na sociedade da informação, onde informação é a matéria-prima fundamental. Por que os jornais que têm suplemento de turismo, telenovelas e fofocas sociais, informática e turismo não dispõem de suplementos de ciência?

A explicação tradicional é a dificuldade de anúncios. Mas, aparentemente, nos comportamos como o cachorro que corre atrás do rabo.

A boa edição que a Folha de S.Paulo fez no sábado, dia seguinte ao anúncio do relatório do IPCC, evidencia o que deve ser feito para abastecer a sociedade de boa informação científica.

Lamentável que o segundo grande jornal paulista, O Estado de S.Paulo, permaneça apegado à idéia de que economia e política – no que estas áreas têm de mais tradicional e limitado – sejam os dois únicos eixos de mundo. E como se – para terem a dimensão que de fato devam ter – não fossem profundamente permeados pela informação científica.

Especificamente no caso do aquecimento global, é preciso dizer que climatologia é uma área de fascinante complexidade, desautorizando quase sempre afirmações taxativas. Nesse caso, no entanto, um mínimo de profissionalismo e responsabilidade social deveriam levar à admissão de que mesmo que o aquecimento pudesse ter origem natural, deveríamos nos preparar para agir no caso de a fonte ser antrópica, isto é, resultado de atividades humanas.

Agora que o consenso científico identifica o aquecimento como produzido pelo homem, é preciso refletir sobre o tempo perdido com preconceitos, negligências e o que se pode aprender com tudo isso.

Caos e oportunismo

Mas toda a confusão pode estar só começando. Grupos religiosos desejosos de caos e desorganização ainda não tiveram tempo de se preparar para promover a versão do fim do mundo e com isso faturar alto. Nada de novo, apenas retrocesso histórico.

Até Isaac Newton anunciar sua gravitação universal, em 1686, a igreja católica fez escândalo e badalou seus sinos a cada vez que um cometa se anunciou no céu. Cometas eram interpretados como sinal de guerra e pestes. Gente com a consciência pesada, o que existe em todas as épocas, correu para a igreja para doações capazes de lhes aliviar a alma. Religiosos aceitaram de braços abertos, ainda que anunciassem o fim do mundo.

Agora, com canais de televisão, um número aflitivamente crescente de estações de rádio, influência das seitas mais exóticas e algumas redações influenciadas pelo que existe de mais obscuro no pensamento contemporâneo – o Opus Dei –, o discurso do fim do mundo pode ser o próximo capítulo da novela ambiental.

Portanto, caro leitor – compreensivelmente preocupado com os danos que infligimos diariamente ao nosso lar cósmico com nosso consumismo desenfreado, desrespeito aos animais, fontes d’água e de tudo quanto é vivo e não vivo – relaxe e tome seu banho quente.

Depois, com calma, reúna seus amigos, vizinhos e suas energias. Arregace as mangas e se prepare para reagir.

Semear a terra

Não há garantia de que, mesmo com todo empenho, sejamos capazes de minimizar os danos dessa negligência. Mas ao menos morreremos em pé, preservando a dignidade, como fizeram líderes indígenas que Dee Brown registrou em Enterrem meu coração na curva do rio, livro sobre a destruição do mundo de nativos norte-americanos pela sanguinária ocupação da colonização.

De imediato, tudo o que cada um de nós pode fazer é, literalmente, plantar uma árvore. Na calçada frente sua casa, no jardim do prédio de seu apartamento, no sítio de um amigo. Em seu próprio sítio.

Observadores mais cínicos podem sorrir diante de iniciativa tão quixotesca. Mas um argumento simples é que, remexendo a terra, depositando a semente de uma árvore, de alguma forma estaremos semeando o futuro. Evidentemente que novas fontes de energia devem ser propostas, padrões irresponsáveis de consumo precisam ser urgentemente reconsiderados e governantes – com pressões crescentes da sociedade conscientizada – devem se esforçar para minimizar impactos sobre o ambiente: da queima de florestas tropicais à captura predatória dos oceanos de que não escapam baleias e tubarões.

Seremos capazes de desenvolver uma série infinita de idéias e criatividade enquanto acariciamos a terra e enterramos uma semente. Como relatam todos os livros sagrados e a ciência confirma, somos da mesma poeira que forma a terra e a ela retornaremos.

Enquanto isso seremos capazes de semear a vida e de resistir para que ela permaneça por gerações sem fim, ainda que um dia devamos deixar a Terra e buscar refúgio em outras estrelas porque a Terra pode ter sido atingida mortalmente por atitudes insensatas e irresponsáveis.

Fluxo da história

Nunca, em nenhum momento da história, fomos capazes de produzir um acidente de proporções tão destruidoras quanto a do aquecimento global. Mas chegamos perto de superar até mesmo este desastre maior. Quando a primeira bomba atômica explodiu, cientistas tiveram receio de que incendiasse a atmosfera. Com isto teríamos nos antecipado a um aquecimento lento, ao menos em comparação com um incêndio nuclear. Escapamos das primeiras bombas e das que estiveram a ponto de explodir durante a Guerra Fria.

A criatividade humana é ilimitada mas, para que produza resultados, é preciso certa fermentação histórica, sínteses que se dão de forma coletiva e que nenhum historiador é capaz de identificar precisamente. Historiadores não têm como garantir, por exemplo, que acontecimentos como este possam ser deflagrados por algo que os chineses identificam com o bater de asas de uma borboleta. Um leve movimento, em algum lugar, é capaz de produzir resultados significativos em outro, do lado oposto do mundo.

Que o leitor tome seu banho quente em paz. Afinal, esta não é a razão principal do aquecimento do mundo.

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Jornalista