Com a apresentação do informe governamental sobre a indústria Papel Prensa (fábrica argentina de papel jornal controlada por empresas privadas, em sociedade com o Estado), na semana passada, a presidenta Cristina Kirchner deu o pontapé inicial para uma nova etapa de maior intervencionismo estatal e de aprofundamento dos seus planos para controlar a informação na Argentina.
É provável que, com um governo eleitoralmente pressionado, se aprofunde o estilo de crispação e de conflitividade com os setores críticos. A presença de Guillermo Moreno (secretário de Comércio Interno e vinculado a milícias kirchneristas) e Hugo Moyano (líder da CGT e do peronismo em Buenos Aires) na primeira fila da plateia do ato realizado esta semana no Salão dos Patriotas Latino-Americanos da Casa Rosada é o melhor indicador dessa tendência.
Por trás do que se poderia chamar ‘a guerra pelo papel de imprensa’ lançada pela presidenta, durante um prolongado discurso na Casa de Governo e que foi difundido em cadeia nacional de rádio e televisão, o governo procura gerar um severo dano econômico e moral aos veículos jornalísticos que não têm se mostrado alinhados ao governo.
Acusações oficiais
A investida da chefe de Estado contra Papel Prensa se baseou em três pressupostos: que é um monopólio; que é administrada em benefício de seus acionistas privados, isto é, Clarín e La Nación, e que as ações da empresa foram adquiridas (em 1976, durante a ditadura militar) da família Graiver com a utilização de práticas típicas do terrorismo de Estado.
Papel Prensa é, de fato, o principal provedor de papel jornal do país e abastece 75 por cento do consumo nacional. Os restantes 25 por cento são importados sem nenhum tipo de impostos, o que coloca a empresa em uma situação de competição que nenhuma outra indústria enfrenta na Argentina: deve competir com produtos importados sem proteção alguma.
Como têm assinalado porta-vozes da empresa, uma commodity como o papel, que se pode importar sem condicionamentos, é a antítese do monopólio.
O monopólio ficaria constituído, a rigor, se Papel Prensa passasse a ser controlada totalmente por um governo que, ao mesmo tempo, maneja a política de importações.
Tanto a presidenta como a representante do Estado no conselho de acionistas de Papel Prensa, Beatriz Paglieri – que até há pouco estava no papel de controvertida interventora do Indec (equivalente ao IBGE brasileiro), acusada de manipular as estatísticas oficiais –, ressaltaram que a empresa papeleira não havia realizado investimentos para melhorar sua produção e sustentar a demanda do mercado interno, situação que justificaria a intervenção governamental.
História manipulada
Além de se tratar de uma avaliação incorreta (em 1978, Papel Prensa produzia 50 mil toneladas anuais de papel e hoje produz 170 mil), trata-se de um tipo de raciocínio mais que perigoso para o direito constitucional de propriedade. Segundo o critério oficial, se uma empresa majoritariamente privada não investe como gostaria o governo, seria passível de sofrer intervenção ou estatização. Um critério que aproxima o kirchnerismo cada vez mais do regime venezuelano de Hugo Chávez.
O governo também denunciou que Clarín e La Nación outorgam descontos a si mesmos pela provisão de papel. Mas o certo é que, de acordo com uma tabela de descontos por volume, aprovada pelos representantes do Estado em Papel Prensa em 2003, se concede uma bonificação de 2 por cento para quem compra 4 mil toneladas anuais, porcentagem que aumenta proporcionalmente até alcançar 12 por cento para volumes de 20 toneladas ou mais.
A mais grave acusação contra os acionistas privados de Papel Prensa tem a ver com a denúncia de que (em 1976) Clarín, La Nación e La Razón teriam se ‘apropriado’ da empresa graças a ‘ameaças, pressões ilegais, sequestros, interdições de bens e torturas’ contra membros da família Graiver (cujo líder, o falecido banqueiro David Graiver, principal acionista privado de Papel Prensa, foi acusado de lavar dinheiro da guerrilha montonera).
O discurso oficial tem sido refutado pelos meios de comunicação acusados – os integrantes da família Graiver foram ilegalmente detidos (pelo governo militar) mais de cinco meses depois de concretizada a venda de suas ações, quando veio à luz a relação financeira entre David Graiver e o grupo Montoneros. Restabelecida a democracia (em 1983), vários desses familiares, em testemunhos na Justiça, nunca disseram haver sido detidos antes ou durante o processo de venda das ações.
Nesse sentido, distintos setores da oposição têm considerado que, ao manipular os fatos históricos com um objetivo claramente político, recorrendo a claras tergiversações, a presidenta corrompeu a sua política de direitos humanos.
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Jornalista do La Nación (Argentina)