Assim como sabemos que após uma chuva a cidade fica molhada, sabemos também que é imenso o poder de persuasão que os meios de comunicação têm atualmente junto à sociedade: as manchetes dos jornais, as chamadas na TV, as notícias instantâneas na internet, os comentários nas emissoras de rádio, todos esses ‘suportes’ do campo midiático ganham imediata repercussão, espraiando-se pela sociedade com velocidade alucinante.
Ainda que em alguns casos não seja algo feito de caso pensado, é fato que a utilização de manchetes de jornais e capas de revistas em programas eleitorais dos candidatos à presidência da República tornou-se mais que corriqueiro no presente pleito de 2010. O candidato José Serra foi brindado com dezenas de manchetes, capas e ilustrações constantes de veículos da mídia impressa, com direito a que locutores leiam os textos e adicionem observações de condenação a quem já é contumaz condenado pelo jornalismo de nossas revistas e jornais de maior circulação.
Nos últimos dias da campanha, algumas manchetes do jornal Folha de S.Paulo sobre comprovada corrupção em licitação para construção de linhas do metrô paulista também se transformaram em material televisivo para a campanha de Dilma Rousseff. Mas nesse jogo de ver bola levantada na imprensa escrita em apoio candidato Serra, o tucano ganhou de lavada: converteu a cada semana diversas capas de jornais em material de sua propaganda política. A ocorrência do expediente só fez crescer o sentimento de que nossa imprensa mais vistosa não apenas tinha seu candidato ao Planalto como também se mostrou seu mais importante instrumento para alavancar votos e constranger sua principal oponente. E como tudo tem um custo – porque também na mídia não existe almoço grátis –, quem paga o preço mesmo é essa coisa muitas vezes intangível chamada credibilidade jornalística.
Interesses determinados
Uma análise mais detida dará conta que os processos comunicativos e os processos político-eleitorais são mais entrelaçados do que podemos imaginar. São vasos comunicantes em que se misturam tanto desprezo quanto preconceitos comezinhos pelo governo de plantão, com a almejada e incontida pressão para que haja alternância na chefia do Poder Executivo. É assim que práticas de corrupção em qualquer escalão do governo parecem estar sempre a poucos centímetros do presidente da República. O mesmo não ocorre com práticas similares afeitas à territorialidade do estado de São Paulo.
Enquanto a campanha situacionista precisou se desdobrar para prover esclarecimentos, tomar ações administrativas de supetão, a campanha oposicionista pôde até ‘dar de ombros’ para qualquer acusação que já foi suficiente para estancar qualquer iniciativa mais arrojada para continuar a investigação jornalística. Para um qualquer, onda pode se transformar em tsunami indonésio, enquanto para outro qualquer tsunami aterrador pode se transmutar em pequena marola de beira de praia.
A política, por estar representada com pessoas de diversas origens partidárias e ideológicas – seja pelo pouco ‘escolado’ Tiririca ou por um ‘especialista em educação’ Gabriel Chalita –, continua sendo palco para encenações e necessita da visibilidade proporcionada pelo campo midiático, já que qualquer acontecimento ou indivíduo só comprova que existe na sociedade se estiver representado na mídia. A visibilidade midiática e a complexidade desse meio levam os media a se constituírem enquanto campo social, isto é, a possuir regras e valores (axiologia), código e gramática próprios, e as costumeiras tensões com outros campos, além da busca por legitimidade, traço natural de qualquer campo social.
Conflitos e dinâmica da política diferem bastante daqueles que caracterizam o campo social da mídia. Política e mídia atraem para seu entorno um campo simbólico de disputa, onde parece reinar nossa velha conhecida lei da selva, segundo a qual cada um tem como principal missão defender seus próprios interesses. Principalmente os imediatos. Assim como a política exerce papel de articulação – articula ideias, lideranças, formulação legislativa e supervisiona a execução de políticas públicas –, a mídia também não prescinde desse mesmo papel e é a mídia que articula a informação que se transforma em notícia, a notícia que abastece a opinião e que desemboca na sociedade em uma mistura nem sempre palatável de fatos reais, fatos imaginados e opiniões sobre um e outro. A mídia sabe que para ter credibilidade – ser crível, digna de confiança dos consumidores de seus produtos – precisa, antes de tudo, ser pautada pela transparência e para a ‘publicidade’ de fatos, com ênfase maior para aqueles carimbados como espetaculares ou pela simples ocultação ou supressão destes quando conflitarem com seus interesses.
Para escrever o futuro
Não faz muito tempo que a academia passou a considerar a mídia também como produtora de sentidos, e não somente mediadora entre os campos. E é no contexto da mídia como produtora de sentidos que percebemos que a visibilidade midiática se revela quase sempre através da massificação dos conteúdos jornalísticos, que movimentam um verdadeiro mercado no qual o consumo da informação não tem fronteiras econômicas, políticas, sociais, culturais ou comportamentais. É fato que em nossa sociedade do consumo da informação, da agilidade e da instantaneidade das notícias, ocorre a busca pelo que carregue nas tintas da diferença, do não-similar, do que trafega entre o grandioso e o épico, da aberração que se encaminha para a espetacularização pura e simples, se assim podemos dizer.
Não é arriscado inferir que se antes éramos buscadores de notícias, hoje a situação piramidal se inverteu por completo: são as notícias que nos buscam. E isso nos faz ter a sensação de que os telejornais são todos iguais, com variações meramente cosméticas, superficiais, e que a imprensa escrita, por trabalhar com as mesmas pautas, só pode se diferenciar uma da outra através da carga ideológica despejada no suporte por quem sabe apenas produzir jornalismo opinativo.
Crescendo o espaço de colunas de opinião, nos distanciamos mais dos fatos, da realidade factual, para tocar nas franjas de aspirações ideológicas. Mas se todos os colunistas rezam pela mesma cartilha ideológica, se tomam caminhos os mais diversos para trilhar e, ainda assim, insistem e forçam a barra para chegarem todos eles ao mesmo lugar e ao mesmo tempo, então estamos construindo um imenso edifício da singularidade em campanha aberta à pluralidade de pensamento. Enquanto o mundo se reorganiza em várias áreas de atuação, encontramos pesadas barricadas da mídia para manter tudo como está: não mexer em nada, fazer de conta que o mundo todo pode mudar, menos os seus conceitos do que é o jornalismo e a concepção de como poder ser exercido.
E não era, absolutamente, para ser assim. As transformações tecnológicas, os avanços da ciência que impactam tanto o que entendíamos como ‘acúmulo de conhecimento humano’, tomaram de assalto os caminhos da informação desde sua produção até o seu usufruto. A concorrência dos suportes midiáticos tradicionais com os novos suportes – e o rápido acesso das massas da humanidade a seus poderes semimágicos a transitar entre o real e o virtual – formam um poderoso quebra-cabeças do que será a comunicação deste futuro-que-se-torna-presente quase que imediatamente.
A hesitação – ou seria o desnorteio? – dos que detêm o processo decisório sobre nossos veículos tradicionais de comunicação é que determina o tempo de sobrevida que lhes resta. Sábios e prudentes são os que aproveitam este momento atual para escrever o seu futuro, um futuro prenhe de coisas como pluralidade de pensamento, delegação de poder decisório, desconcentração de propriedade, abertura inaudita ao que é novo e ao que privilegia a velha e santa atividade de pensar.
Poderosos desdobramentos
A revolução no campo das comunicações, para sermos francos, ainda nem começou. Estamos vendo apenas os ingredientes serem apresentados um a um. Muitos destes nem se tornaram ainda conhecidos. Isto porque não existe caso na literatura humana que diga que as grandes revoluções do conhecimento começaram de fora para dentro. Não foram as máquinas que chegaram primeiro. Nem os tipógrafos, nem os foguetes chegaram primeiro ao mundo da existência. Primeiros eles brotaram dentro do ser humano e foram, como flor que é despetalada, se ajeitando, se organizando, encontrando seu lugar no mundo real.
Não demora mais três ou cinco anos e teremos condições de saber tudo o que acontece no mundo, do jeito que acontece, por que acontece desse e não daquele jeito e quais as consequências imediatas, no curto, médio e longo prazos do que aconteceu. E tudo isso será acessível a todos sem que paire sobre todos nós a ameaçadora sombra da incerteza e da dúvida.
Da mesma forma, não causará espanto algum se aqueles há tanto tempo marginalizados pela mídia, como se inexistentes fossem, resolverem ir a campo e criar seus próprios veículos de comunicação, seus próprios impérios de produção de sentidos e assumirem, eles mesmos, a mediação entre os campos em que se dá a atividade humana em toda a sua extensão e plenitude.
O futuro dos meios de comunicação tradicionais (rádio, jornal, televisão) precisa parar de lutar ante a evidência a que ele chegou, e daqui para a frente veremos não mais que seus poderosos desdobramentos. É tempo para se perceber como metáfora completa do dilema da comunicação estes versos de Pablo Neruda:
‘Tu eras também uma pequena folha/ que tremia no meu peito./ O vento da vida pôs-te ali./ A princípio não te vi: não soube/ que ias comigo,/ até que as tuas raízes/ atravessaram o meu peito,/ se uniram aos fios do meu sangue,/ falaram pela minha boca,/ floresceram comigo.’
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter