Aconteceu durante a recente e justíssima homenagem ao jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, no salão nobre da Câmara Municipal de São Paulo, quando do relançamento, no livro O Depoimento (Editora Rio), da extraordinária reportagem que esse grande repórter fez em 1972 com o carrasco nazista Klaus Barbie, o chefe da Gestapo em Lyon, na França, durante a II Guerra Mundial [veja remissões abaixo].
A fala de Ewaldo na ocasião, bem como a presença no evento de figuras de destaque da mídia, inclusive na mesa diretora dos trabalhos, propiciou uma inevitável troca de idéias sobre os rumos do jornalismo. E um dos temas debatidos acabou exprimindo velha preocupação do repórter, exposta ao longo de sua carreira: ‘Por que será’, perguntou ele, ‘que o poder é sempre a fonte da maioria das notícias que se publicam?’
Entre os oradores que se seguiram, o primeiro a apanhar o mote foi não um jornalista, mas um empresário e ex-político – Guilherme Afif Domingos, presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado. Afif se queixou, corretamente, do avassalador e preponderante espaço que nós, jornalistas, damos em todos os veículos ao noticiário proveniente do Estado em suas diferentes formas e exigiu mais atenção à sociedade, às empresas, às ONGs, às pessoas comuns, suas ânsias, problemas e esperanças.
Afif viu-se contestado por Ruy Mesquita, diretor do Estado de S.Paulo. Mesquita lembrou aos presentes, com ênfase, a luta de décadas de seu jornal contra a sufocante presença do Estado na sociedade. Citou, entre outros exemplos, uma longa série de reportagens que ele próprio inspirou em 1983 no Jornal da Tarde, co-irmão do Estadão, de que então era diretor responsável, intitulada ‘A República Socialista Soviética do Brasil’, que teria sido um marco pioneiro na discussão, pela imprensa, dos excessos e malefícios da estatização.
Nervos da vida real
Mesmo bom de debate e aguerrido como sempre, Mesquita acabou errando duplamente. A série do Jornal da Tarde ocorreu quase dez anos depois de o empresário Henry Maksoud ter adquirido de seu colega Said Farhat a hoje extinta revista Visão, transformando-a, em pleno delírio estatizante do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), no primeiro veículo da imprensa a questionar, de forma incansável e barulhenta, os males do excesso de Estado. E o que estava sendo debatido a partir do mote de Ewaldo – que por coincidência foi o diretor de Visão nos nove meses seguintes à troca de donos, entre 1974 e 1975 – não era a presença do Estado na economia, mas a presença do Estado no noticiário.
Trata-se de um problema grave que afeta toda a imprensa brasileira, inclusive, é claro, o Estadão dirigido por Ruy Mesquita. Não é de hoje. Pude constatar isso pessoalmente quando fui editor-chefe do jornal, entre 1990 e 1992. Na época, circulava entre editores dos veículos da casa todo final de manhã uma extensa pré-pauta de assuntos preparada pela Agência Estado. Dependendo do dia, poderia ter até uma centena ou mais de itens.
Depois de algum tempo na redação, me obriguei diariamente a abrir uma brecha na atribuladíssima agenda que a função impunha para, pessoalmente, contabilizar as pautas que de alguma forma tinham origem no poder ou se destinavam a cobrir alguma de suas múltiplas manifestações. (Essa preocupação com a presença opressiva do poder em nossas pautas Ewaldo, mestre de várias gerações de jornalistas, conseguiu incutir em quem teve a felicidade de trabalhar com ele, como o signatário.)
Ao final de três meses, tabulei os resultados: espantosos 67% das pautas iam, de uma ou outra forma, bater em assuntos oficiais. Presidente da República e tudo o que se refere ao Palácio do Planalto, ministros, secretários de Estado, grandes agências federais – INSS, BNDES, Polícia Federal, Banco Central, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Receita Federal –, Câmara dos Deputados e Senado Federal com plenários, comissões, lideranças, articulações e boatarias, Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores, Justiça Federal, Procuradoria-Geral da República, governadores de Estado, secretários, Assembléias Legislativas, Ministério Público, prefeituras, câmaras municipais, universidades, polícias, penitenciárias… A lista é interminável.
Esses 67% – dois terços do total de assuntos diários! –, que provavelmente se aproximariam do que era e continua sendo feito hoje na generalidade das redações, subiriam vários pontos se as pautas de então não incluíssem assuntos como artes e espetáculos, relações internacionais, empresas, a parte ‘privada’ do mercado financeiro e esportes. É claro que o jornal não reproduzia, em suas páginas, idêntico percentual de matérias tendo o poder como origem. O comando da redação, então dirigida com maestria por Augusto Nunes, meu superior imediato, e os editores executivos, editores, pauteiros, chefes de reportagem e repórteres obviamente instilavam uma bela dose de sangue e nervos da vida real no que o leitor receberia no dia seguinte. Mesmo assim, ainda que não tivesse sido possível tabular de forma sistemática o que o Estadão finalmente publicava, era fácil verificar que o índice de notícias de alguma forma tingidas pela cor do poder era muito maior do que o desejável.
Pecado supremo
Não tive tempo de mobilizar suficientemente a equipe de então de modo a alterar essa tendência, pois deixei o jornal logo após a ida de Augusto para o comando da Zero Hora. Mesmo que houvesse continuado no jornal, não teria sido tarefa fácil arrostar o que é, na verdade, um problema cultural do jornalismo brasileiro – conseqüência, com certeza, de algo além dos limites do universo da mídia que é o gigantismo da presença do Estado, desde os primórdios do Brasil Colônia, na sociedade brasileira, nos negócios, no trabalho e na vida dos cidadãos.
Marcos Sá Corrêa, que dirigiu o Jornal do Brasil com brilho fulgurante num dos períodos (1985-1990) de maior prestígio e influência do jornal em seus 113 anos de história, encontrou esse problema durante sua gestão. Marcos costumava dizer (e ainda costuma) que nós, jornalistas brasileiros, atribuímos uma importância ‘quase paranóica’ ao noticiário político – e ressalte-se que ele próprio tem sido, ao longo da maior parte de sua carreira, um jornalista voltado para a cobertura política.
Durante os trabalhos da Assembléia Constituinte (1987-1988), ele fez um esforço hercúleo para que o jornal deixasse o mais possível de lado, como costumava dizer, a cobertura ‘da cartolagem’ – os conchavos e picuinhas políticas, as manobras para aprovar essa ou aquela emenda, as articulações do ‘Centrão’ conservador e da esquerda nacionalista, as rivalidades entre o presidente da Assembléia, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), e o então presidente José Sarney – para tentar decifrar ao leitor que Constituição, enfim, deveria sair daquilo tudo e em que e como ela influenciaria a vida do leitor. Aprovada a Carta, Marcos acabaria admitindo, numa reunião na sede do jornal, no Rio, de que participei como então diretor da sucursal de São Paulo: ‘Não deu. Fracassamos’.
Não era por acaso a preocupação de Marcos, como a de Ewaldo. A ênfase excessiva no poder – ainda que para criticá-lo e expor suas mazelas, como é nossa obrigação – deforma a realidade que deveríamos apresentar ao leitor/telespectador/ouvinte/internauta. A vida é feita de muito mais. Carregando na dose desse recheio ‘oficial’, a mídia vai ficar crescentemente distante das necessidades de informação e análise do homem comum. Vai, no caso brasileiro, estar permanentemente retratando uma face do país, o Estado – importante, crucial, mas no fim das contas apenas uma face –, como se ela fosse o próprio país. Uma vez que o Estado está em crise, é falho, incompetente, omisso, injusto e muitas vezes corrupto, no fundo acabamos diariamente dizendo que o Brasil e a sociedade brasileira é que são tudo isso.
Além de tudo, continuando nessa toada, a mídia vai, por fim, cometer o pecado gravíssimo, indesculpável e mortal de ser chata.
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(*) Jornalista.