O eleitor deve zanzar desnorteado através da imprensa. A pouco mais de um ano da eleição, o noticiário dos jornais não reflete a intensidade das negociações e articulações de bastidores, que estão definindo o quadro político para a eleição de 2010. Por causa dos interesses das empresas jornalísticas.
Se a posição dos jornais refletisse – real e definitivamente – a opinião dos seus donos, Jader Barbalho teria partido para a oposição a Ana Júlia Carepa e Romulo Maiorana Júnior passado a apoiar a reeleição dela. É o que sugerem as aparências. Mas as aparências podem ser enganosas. Não porque, por trás delas, haja posições editoriais, doutrinárias, políticas ou ideológicas que possam distinguir os principais atores da cena política paraense. Qualquer que venha a ser o novo governador, dentre os candidatos que já lançaram os seus nomes à liça, não se há de esperar mudança – senão cosmética – nos rumos do Estado. Se as aparências podem camuflar a realidade é porque não se tem informações confiáveis sobre o que acontece nos bastidores da política paraense. E na sua extensão – ou determinante – nacional.
O eleitor é mantido sob severo jejum de informações quanto à bolsa eleitoral, cujos lances são feitos em circuito fechadíssimo, por freqüentadores privilegiados. Pouco filtra através da grande imprensa porque seus donos são interessados diretos no que se processa e no que pode vir a acontecer. Às vezes, têm participação nos próprios acontecimentos, ou por serem políticos (é o caso de Jader Barbalho) ou por agirem como se fossem, com um insaciável apetite de poder (caso de Romulo Maiorana Júnior).
Cobertura agressiva
Quando alguma notícia, comentário ou crítica atravessa essa muralha de contenção, o leitor precisa encarar o material com toda sua capacidade analítica e rigor informativo. Do contrário, pode tomar gato por lebre e se tornar vítima de manipulação. Há mais balões de ensaio nas páginas dos jornais do que fatos. Abstraindo a existência do leitor, como se ele fosse um detalhe, ou mesmo circunstância irrelevante, os jornais trocam recados ou mensagens codificadas. O interesse de informar desapareceu.
Num cenário no qual as posições públicas não expressam um pensamento político ou uma visão ideológica, o que separa os contendores são os interesses pessoais. Por isso, é preciso saber como se movimentam as principais peças do tabuleiro político, com quem conversam, que manobras realizam, o que dizem nos bastidores. Os jornais já foram cheios desse tipo de matéria. Hoje, vivem numa anemia de impressionar. Seu silêncio não significa que nada acontece, apenas que seu interesse corporativo sobre os fatos se tornou excessivo. Não se permitem a margem de liberdade que antes havia, quando a imprensa, a partir de certo momento de maior agitação pré-eleitoral, ecoava a voz rouca das ruas e o sussurro dos gabinetes, com notas picantes, editoriais agressivos e muita informação (ou mesmo desinformação, mas sem calmaria).
Um boato importante, que antes inundaria a imprensa, permanece não esclarecido. Conta a lenda que a governadora Ana Júlia Carepa foi ao gabinete de Romulo Júnior na sede de O Liberal, de lá seguindo para o encontro dos governadores e dirigentes do PT no Nordeste, esticado a Brasília com o presidente Lula. Num carro não identificado e com um único auxiliar, Ana Júlia teria acertado um acordo, através do qual o jornal cessaria a publicação de notas críticas (e mesmo debochadas) na coluna ‘Repórter 70’ e as matérias negativas sobre o governo. Uma dessas matérias, que estava no forno, foi imediatamente congelada. O ‘R-70’ nunca mais se referiu ao ‘meio governo’ de Ana Júlia Carepa, batismo dado a partir da redução do expediente nas repartições estaduais, como medida de economia tão eficiente quanto poupar palitos de fósforo. Para conseguir tanta boa vontade, a governadora teria mandado quitar a dívida com a empresa e lhe reservado boa programação publicitária oficial.
Em contrapartida, a cobertura dada pelo Diário do Pará à administração do PT se tornou ainda mais agressiva. Uma foto não bem posada da governadora ocupou a largura da primeira página no dia em que foram declarados indisponíveis os bens dos auxiliares de Ana Júlia envolvidos no polêmico kit escolar, à frente a secretaria de Educação. O chicote do jornal dos Barbalho não parou mais de vergastar os amplos costados do governo do Estado, mais como reação ao entendimento com os concorrentes da mídia e inimigos políticos do que por discordância da gestão petista.
Nudez da rainha
A intensificada acidez do tratamento não significa, porém, que o rompimento entre Jader Barbalho e Ana Júlia Carepa é um caminho sem volta ou um fato consumado. Significa, isto sim, que a fragilidade do atual governo o sujeita a ter que pagar um alto preço, em termos simbólicos e literalmente, para que suas chagas não sejam ainda mais sangradas, tão visíveis e profundas elas vão se tornando.
Se Ana Júlia conseguir a proeza de contentar a grande mídia paraense, polarizada entre os Barbalho e os Maiorana, indo dos negócios à política, esse trunfo terá imposto uma grande perda aos cofres públicos. Não só os do Estado: a esta altura, a nova composição da aliança situacionista exigirá o comparecimento do governo federal, para suplementar e assegurar que as cláusulas dos contratos – não escritos, naturalmente – sejam cumpridas.
Só assim, a nudez da rainha não será revelada ao reino, poupando-a do destino coerente com o seu desempenho até agora: a derrota. Ana Júlia poderá ganhar, revertendo a tendência atual. Mas o Estado perderá, como de regra há muitos anos.
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Punido em Belém, premiado em São Paulo
Eu devia estar em São Paulo no dia 9 para receber homenagem durante o 4º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, que começaria formalmente nesse dia. Não pude ir por causa da condenação que me foi imposta, três dias antes, pelo juiz Raimundo das Chagas Filho, da 4ª vara cível de Belém, na ação de indenização por dano moral, cumulada com tutela inibitória, proposta contra mim por Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana, donos do grupo Liberal. Junto comigo, também seria homenageado Paulo Totti, repórter especial do jornal Valor Econômico, que tem base em Porto Alegre.
Lívio, meu filho, me representou e leu a mensagem que mandei para os dirigentes da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), responsável pela realização do congresso. O texto é reproduzido a seguir.
Quatro anos atrás eu devia ir a Nova York para receber um prêmio do Comitê de Proteção aos Jornalistas. Fui escolhido para a honraria como represente do continente americano, numa premiação que abrange todos os quatro continentes. À última, hora tive que mandar minha filha para me representar. Audiências na justiça do Pará, marcadas para a mesma época, não me permitiram me afastar de Belém.
Outras dessas ‘coincidências’ aconteceram em vários momentos, como neste agora. Felizmente, tenho uma família numerosa, para os nossos padrões de classe média, e aqui fala em meu lugar outro filho, o Lívio. No sábado, estarei representado pelo mais novo, o Angelim. Espero não ter que continuar a aumentar a família, à maneira da Bíblia, para dar oportunidade a todos de falarem em meu nome para os colegas de profissão e todos os que se encontram reunidos em solenidades como esta.
Ela deveria ser simplesmente festiva. Um momento de trégua para saudarmos o mais longo período democrático em toda a história de 120 anos da nossa república. Tão pouca república para democracia ainda menor. Há 24 anos não temos violações constitucionais. O recorde anterior, da Quarta República, fora de 19 anos. Mas estamos realmente na plenitude do estado democrático de direito? Temos, de fato, mais do que uma democracia formal? Ou estão nos entretendo com fogos de artifício de liberdade disparados aos céus, enquanto, cá embaixo, pisam nos nossos calos (ou num ponto mais sensível acima)?
Fato inusitado
Tornei-me jornalista profissional quando a ditadura de 1964 tinha dois anos. Acompanhei de perto seus rastros até o seu fim, em 1985. Durante esse período, fui levado às barras dos tribunais apenas uma vez, enquadrado na terrível Lei de Segurança Nacional. Mas a Auditoria Militar de Belém desqualificou o suposto delito (de opinião) e a justiça comum, ao invés de me condenar, como queriam os perseguidores, reconheceu que eu cumpria meu dever de jornalista e me absolveu, com elogios.
De 1992 até o dia de hoje, no período de mais ampla democracia da história brasileira, já fui processado 33 vezes e condenado quatro. A quinta condenação me apanhou com um pé a caminho de São Paulo, nesta segunda-feira, e me derrubou da escada do avião. Tive que ficar em Belém para tratar da minha defesa contra a decisão do juiz da 4ª vara cível da capital paraense. Ele quer que eu pague 30 mil reais de indenização, mais juros e correção monetária, além de custas judiciais e honorários advocatícios, que arbitrou pelo máximo, de 20% do valor da causa (ou seja, seis mil reais). O juiz não ficou por aí: também me proibiu de voltar a falar de Romulo Maiorana pai, o fundador do maior império de comunicações do Norte do Brasil, afiliado à Rede Globo de Televisão, cuja memória eu teria ofendido com um artigo publicado no meu Jornal Pessoal. Se depender do juiz, não poderei mais falar não apenas do pai, que morreu em 1986, mas também dos seus dois filhos, que propuseram a ação cível de indenização por dano moral, embora Ronaldo Maiorana e Romulo Maiorana Júnior não tenham feito tal pedido na peça inicial do processo. E me impôs a publicação de uma carta, que os dois nunca escreveram, como exercício do direito de resposta.
Depois da leitura da sentença, eu podia ir para o espelho da madrasta da Branca de Neve e me perguntar: sou mesmo um jornalista sério ou achincalho a honra alheia, como disse de mim o juiz Raimundo das Chagas Filho, usando essa expressão, tão pouco judiciosa? Meu jornal integra a imprensa marrom ou amarela? Falo do que não conheço? Informo sem apurar? Não tenho escrúpulos? Então, por que os senhores me homenageiam hoje? Estão consagrando um farsante?
Num dia como o de hoje, em 1997, eu estava ao lado do fórum romano. Era o primeiro cidadãos das Américas a receber o Colombe d´Oro per la Pace, um troféu até então distribuído apenas entre europeus, três deles ao meu lado naquele dia. Comigo, foi distinguido o deputado federal irlandês John Humme, de nome inspirador, que no ano seguinte receberia outro prêmio, o Nobel da Paz. Ao abrir a sessão, o senador Luigi Anderlini, presidente da instituição que criou o prêmio, destacou um fato inusitado: no auditório sentavam-se, vizinhos, pela primeira vez, os embaixadores da Inglaterra e da Irlanda do Norte, unidos no reconhecimento pela luta do deputado Humme em favor da paz naquela conturbada região. O público, emocionado, aplaudiu de pé.
Deu no LA Times
O embaixador brasileiro foi o único a não levar o calor oficial ao representante do seu país. Um funcionário da embaixada tentou se explicar, meio sem jeito. O embaixador Pires do Rio estava ocupado demais. Mas, ao testemunhar a relevância da solenidade, quis consertar, me convidando para almoçar no belíssimo Palácio Pamphili. Não fui, é claro. Soube depois que o embaixador se informara com o Itamaraty sobre a minha pessoa e recebera recomendação de fazer-se ausente. Eu não era confiável ao governo do ex-professor Fernando Henrique Cardoso, nosso príncipe sociólogo, embora os italianos me considerassem em condições de receber a honrosa distinção do prêmio, quebrando o unitarismo europeu.
Continuo a não ser confiável ao poder estabelecido. Tenho o indesejado mau hábito de também não confiar nos poderosos. Só que vou conferir o que eles fazem, a partir da premissa de que fazem mais por si do que pelo povo, que, de alguma maneira, lhes deu o poder que usam – e do qual, em regra, abusam. Tenho feito isso desde que comecei no jornalismo, 43 anos atrás. Busco a verdade, aquela verdade que é relevante para os cidadãos, os mesmos cidadãos que também me conferiram um tantinho de poder, do qual, apesar disso, jamais abusei.
Meu poder deriva da minha inteligência, maior ou menor, o mais democrático dos poderes. O que sei digo por inteiro aos que me lêem ou ouvem. Mas se o que eu disser não corresponder à verdade, ou à sua aproximação mais próxima (se me permitem o pleonasmo), podem me dizer, da forma que acharem conveniente, que estou errado. E eu assumirei a nova verdade. Desde, é claro, que seja convencido sobre ela.
Há quase 22 anos o Jornal Pessoal tem sido um espaço da verdade. Espaço modesto, artesanal, paupérrimo, apesar de o juiz ter atribuído ao meu quinzenário uma riqueza tal, em condições de poder arcar com o valor indenizatório. Esse valor equivale a um ano e meio de faturamento bruto do Jornal Pessoal. Se a sentença fosse aplicada a O Liberal, valeria, no mínimo, 30 milhões de reais. Desse tamanho, seria um golpe de morte, tanto ao jornal rico quanto ao jornal pobre, o que dá uma medida mais exata da intenção dos promotores da ação, que pediram originalmente valor equivalente a 300 salários mínimos.
O Jornal Pessoal tem apenas doze páginas, em formato ofício. Não usa cor nem fotografia. É uma massa de texto. Por tão pouco, custa relativamente caro, três reais. O preço não é suficiente porque sua tiragem é de apenas dois mil exemplares. Mas não é suficiente principalmente porque o jornal nunca aceitou publicidade, oficial ou privada, explícita ou disfarçada. Nem compadrio, nem nepotismo. Sua diretriz é: não aceitamos embromação. Pouco importa se quem fale seja o governador, o empresário, o dono da comunicação ou a bela atriz: tudo que disserem e fizerem será checado, comparado, submetido a teste de consistência e interpretado. Se não gostarem do produto final, podem se manifestar. O Jornal Pessoal é das raríssimas publicações a reproduzir todas as cartas que lhe são enviadas, na íntegra, mesmo aquelas que ofendem o único funcionário da empresa. Mesmo que a ofensa venha na forma de palavrões, como já aconteceu. A carta sai, sempre.
Pequeno, circulando apenas em bancas e livrarias, sem glamour, sem capital, ainda assim o Jornal Pessoalrepercute. Outro dia mereceu matéria de página inteira no Los Angeles Times, com chamada de capa. Está no clipping de empresas poderosas, como a Vale do Rio Doce, que é tema constante das suas páginas, sem nunca ter sido desmentido. O Jornal Pessoal erra, mas até agora só errou em pequenas coisas, na maioria das vezes pelo excesso de trabalho do seu redator solitário, que tirou suas últimas férias em 1984, para escrever, nos Estados Unidos, um livro contra um dos ídolos daquele país naquela época, o milionário Daniel Ludwig, que foi dono de um império na Amazônia, o Projeto Jari.
Como sempre
O Jornal Pessoal nunca errou sobre o essencial. E muito menos errou deliberadamente. Ele se arrisca sempre, tentando encontrar a verdade, sobretudo a última verdade, a mais recente, a mais importante, a mais incômoda, aquela que não pode faltar na agenda dos cidadãos, para que eles saibam o que lhes interessa e decidam da melhor maneira possível. Mirando o cotidiano, façam a história. Mesmo que para isso o jornal precise comprar brigas, e brigas enormes e extensas, com aqueles que gostam de manipular a sociedade e fazer de sua vontade e de suas suscetibilidades e veleidades fontes de arbítrio, da verdade utilitária.
A quantidade de processos e de condenações que acumulo desde 1992 é um indicador da razão da existência do jornal, que é uma razão essencial, a exigir que a democracia seja mais do que um retrato decorativo na parede da república, exclusivista e excludente. Mais sintomático ainda é o fato de que dos 33 processos que sofri, 19 sejam da autoria dos donos do grupo Liberal, que se consideram os donos da informação no Pará, senhores da verdade conveniente. Nunca um jornalista foi tão perseguido por uma empresa jornalística, acho eu.
Na origem dessa corporação está um cidadão filho de italianos, Romulo Maiorana, que foi meu amigo e que jamais faria o que seus sucessores estão fazendo, apesar de nossas grandes diferenças, que provocaram certos atritos durante os 13 anos em que trabalhei no jornal dele, ao mesmo tempo em que era correspondente de O Estado de S. Paulo em Belém. Como a Itália é meu segundo país, por afetividade, tenho-a sempre na memória. Ao receber o prêmio em Roma, recitei trecho da Divina Comédia, de Dante, de onde tirei uma expressão para definir a Amazônia pelo que ela se tornou com sua ocupação irracional e destrutiva: a selva selvaggia aspra e forte. No grande poema me inspiro para definir também o que é que pretendem meus perseguidores, aliados a esta instância do poder que precisa da nossa atenção, fiscalização e reflexão: a justiça.
Na entrada do inferno, Dante vislumbrou uma advertência: ‘Deixai a esperança, vós que entrais’.
É a placa que os donos do poder querem impor a Belém, ao Pará e à Amazônia, da qual pretendem se assenhorear pelo exercício da violência, da coação e da irracionalidade. Por isso tenho sido tão processado e tão perseguido, a ponto de não poder estar aqui, como pretendia, entre pares e amigos. Mas esses potentados não conseguirão o que pretendem. A verdade nos libertará. Como antes. E como sempre.
Muito obrigado pela generosa lembrança do meu nome e piedosa paciência com as minhas palavras.
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Quando a reportagem cruza com a história
Escrevi este texto para minha apresentação durante o 4º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, entre 9 e 11 de julho, ao qual não pude comparecer, atado aos processos judiciais em Belém
.Devo à sensibilidade dos dirigentes da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) o melhor tema que já me foi proposto desenvolver, sobre a relação da minha vida com a história contemporânea da Amazônia. Meu maior patrimônio profissional resulta de ter estado no lugar certo na hora certa na Amazônia durante duas décadas, pelo menos até o final dos anos 80 do século passado. Exatamente, até 1989. Por que justamente nesse ano? Porque foi quando pedi demissão de O Estado de S.Paulo, onde trabalhei por 18 anos seguidos. Até dois ou três anos antes dessa data, nenhuma proposta minha de viagem foi recusada ou sequer posta em questão pela sede paulistana. Fui aonde quis, pelos dias que quis, até que se consumou a destruição de uma das místicas que constituíam o encanto do jornal mais influente do Brasil.
Orgulho-me de ter estado na origem do compromisso que o Estadão assumiu com a sorte da última grande fronteira de recursos naturais do país – e do mundo. Esse compromisso começou a ser tecido no início de 1971. Num dos movimentos pendulares que então fazia entre o Sul Maravilha e a Jungle, decidi mais uma vez voltar a Belém. Ia interromper meu curso na Sociologia e Política, a mais antiga das escolas de ciências sociais do país, para atender ao chamado da selva, que ecoava pelas minhas entranhas de caboclo – caiado de europeu – das margens alvas do mais belo rio do planeta, o Tapajós. A Transamazônica avançava e a Amazônia encolhia, desaparecia. Era preciso ver, ouvir, ecoar, propagar.
Meu sinal de alerta definitivo soou enquanto entrevistava o engenheiro Eduardo Celestino Ribeiro para uma antológica edição especial da revista Realidade, da Editora Abril, comandada com maestria por Raimundo Rodrigues Pereira. Além de ser dono da construtora Cetenco, Ribeiro era fazendeiro no sul do Pará. Do alto do prédio da Federação das Indústrias de São Paulo, ainda na sede velha, no viaduto Maria Paula, ele discorria com fluência e determinação sobre o novo mundo, que ele e outros redivivos bandeirantes paulistas estavam criando. Onde havia mata, formavam pastos e distribuíam gado, avançando sobre a floresta a partir de uma base intermediária, que foi estabelecida no Planalto Central na onda anterior de avanço da fronteira econômica nacional, a ‘corrida para Oeste’. Tudo ia virar sertão, inclusive aquela região, bem maior do que a outra parte do Brasil, demarcada por sua exuberante floresta, a Amazônia.
Uma incógnita
Por ser sertão, Deus que tratasse de se armar se quisesse entrar ali. O redemoinho da motosserra, do ‘três-oitão’ e outras ferramentas equivalentes da suposta modernidade entrariam em ação. Para construir a suaAmazônia, de pastos, gado, estradas, hidrelétricas, mineração e blitzkrieg de ataque, esses bandeirantes modernos iriam destruir a minha Amazônia, centrada no equilíbrio ecológico em torno da floresta nativa. Os seus habitantes estavam muito mal informados sobre essa nova, decisiva e irremediável história. Eu tinha que tentar alertá-los sobre a situação que se constituía, numa surdina inaudível nas capitais, ainda encantadas pelo canto da sereia de além-mar, da cultura metropolitana. Não podia atuar do lado de fora. O melhor combate precisava ser travado diretamente nos fronts criados no interior pelas rodovias de penetração, que estavam pondo abaixo a razão de ser da Amazônia, o traço que a distingue das demais regiões da Terra: a sua floresta.
Zélia, minha colega e mulher de Laerte Fernandes, do Jornal da Tarde, me colocou em contato com Raul Martins Bastos, que comandava as sucursais e correspondentes do Estadão. Acertamos para eu assumir como correspondente do jornal na capital paraense. Raul garantiu seu respeitado endosso para as viagens que eu começaria a fazer, produzindo quantidades industriais de matérias, que iriam se alastrando pelas páginas do Estado, ocupando espaços cada vez maiores, pulando para o topo da pauta jornalística.
Em 1973 voltei a São Paulo para concluir minha graduação em sociologia, o curso pelo qual optei, jornalista profissional no qual me transformara quando ainda era estudante secundarista, descrente de que a comunicação social me pudesse servir melhor. De 1973 a 1974 montamos para o Estadão a melhor rede de sucursais e correspondentes que já houve na imprensa brasileira. Sabíamos mais e melhor do que a ditadura sobre os acontecimentos em todo território nacional. Muitas vezes essas informações não chegavam aos leitores, bloqueadas a meio caminho pela censura prévia estabelecida na redação. Mas continuamos a produzir, todos os dias, um retrato completo do país. Além do público interno, só os censores e, através deles, os seus chefes em Brasília, liam as matérias, fartamente seqüestradas das páginas a serem impressas e remetidas aos leitores. Por esse caminho tortuoso, as informações rejeitadas pelo governo chegavam a algum destino, tornando-se matéria de opinião pública.
Talvez esse mecanismo explique um fato que o pesquisador da coleção de O Estado de S. Paulo não deixará de observar: a liberação para publicação, pelos Torquemadas fardados, de matérias que atingiam o todo-poderoso governo através da política de ocupação por ele aplicada na Amazônia. Todas as distorções desse ‘modelo’ de desenvolvimento econômico do país se evidenciavam no seu capítulo amazônico: a destruição da natureza (sobretudo da floresta, no que viria a se caracterizar como o maior desmatamento da história da humanidade), a desorganização da vida social, a corrupção, a violência, etc.
Por que essa maior tolerância ao desvio da liberdade de imprensa em temas amazônicos? Porque não havia uma unidade elementar entre os senhores do baraço e do cutelo quando se tratava de Amazônia. Grupos nacionalistas, temendo que a cúpula do governo pudesse estar entregando – ao invés de integrar – a região, pressionavam para que as informações amazônicas pudessem circular. Eles próprios não sabiam o que de fato acontecia, embora integrassem o governo. A Amazônia ainda era uma incógnita. E em nenhum lugar ela se achava mais bem refletida do que nas páginas do Estadão. Esse periscópio tinha que permanecer acima da linha da censura. E permaneceu.
Resultado brutal
No final de 1974 eu estava de volta a Belém, desta vez para não sair mais. Montamos a primeira sucursal verdadeiramente regional da imprensa brasileira. Ela seria a autora do texto final de todas as matérias nascidas na Amazônia. O honorável serviço de reescrita na sede não alteraria mais o conteúdo dos despachos, se eles atendessem aos critérios editoriais da empresa, tecnicamente falando. Nada do enfoque exótico, colonial, empobrecedor, que caracteriza as abordagens espasmódicas da imprensa brasileira da ‘questão amazônica’.
Belém comandaria uma rede de correspondentes espalhados por toda Amazônia Legal, quase dois terços do território brasileiro. Em cada capital amazônica e, no caso do Pará, em mais duas cidades interioranas, foi instalado um bom jornalista, com contrato de trabalho em carteira (característica inédita na organização empresarial jornalística), salário fixado pelo máximo local e com apoio logístico para ir aonde os acontecimentos exigissem. A palavra dessa rede era a verdade, até prova em contrário. E assim foi por algum tempo, até que uma série de fatores, incluindo as permanentes tensões e entrechoques entre o que os patronos da ocupação da Amazônia pensavam em sua sede e o resultado de sua política no local, revelada sem retoques ou mistificações, tornou a convivência conflituosa impossível. A rede começou a ser desfeita, a independência encolheu, o espaço nas páginas do jornal encurtou, a visão da sede se modificou. Em 1989 esses tamanhos já eram mínimos e achei que era a hora de romper de vez com a grande imprensa. Pedi o chapéu e fui me acantonar no liliputiano Jornal Pessoal, que já estava com dois anos de atividade.
Sabia que, a partir daí, enfrentaria a clava do Golias com o estilingue de um David, sem a certeza da parceria divina para inverter a correlação de forças. Graças aos meios do Estadão e também do jornal ao qual me associei localmente, O Liberal, ainda não transformado em refém dos interesses mercantis da segunda geração da família, vi com meus próprios olhos e pude anotar, com riqueza de detalhes, tudo de relevante que aconteceu na Amazônia ao longo das décadas de 70 e 80. Nesse período o processo histórico da região foi deslocado de vez da margem dos rios para o interior da floresta, com um resultado chocante e brutal para produto que ainda não tem 50 anos: a derrubada de quase 20% da sua superfície coberta por floresta, o equivalente a três vezes o território de São Paulo, no qual se acha concentrado um terço da riqueza nacional.
Utopia necessária
Sei que o que vi e sobre o que escrevi é a própria história em processo, uma história como poucas houve e, espero, poucas voltarão a se repetir, com suas cores dramáticas e infamantes. Com os olhos de um adolescente de 16 anos, vi cientistas de todo mundo reunidos em Belém, no centenário da mais antiga instituição de pesquisa regional, o Museu Paraense Emílio Goeldi. Percebi então que a Amazônia á uma questão planetária, que, para o bem e para o mal, não pode ser tirada desse âmbito mais amplo. Aos 18 anos, fiz a primeira viagem à Serra dos Carajás, que se constituiria a maior província mineral do mundo.
Aprendi que a riqueza do subsolo da Amazônia lhe impõe este como o primeiro desafio de inserção global. Conheci muitos bravos personagens da história amazônica que perderam seu papel nesse drama por terem sido assassinados, como Chico Mendes, Gringo e centenas de cidadãos esmagados pelo trator da história oficial. Fui testemunha, às vezes solitária, de acontecimentos únicos, como o ingresso, no rio Jari, da fábrica e da termelétrica trazidas do Japão pelo milionário americano Daniel Ludwig, com quem tercei armas. Fui alvo de ameaças e vítima de agressões. Aos poucos, minha indignação foi crescendo e meu desejo de intervir nessa realidade extrapolou limitações. Não só escrevia, em todos os lugares que se me oferecessem. Também bradava aos quatro ventos, num circuito de palestras dentro e fora do Brasil que se expandiu em espirais.
Tanto escrevi e tanto disse que meu texto se tornou lido e minha voz, ouvida. Passei a incomodar, acho que em especial porque a força da minha indignação não alterou o meu compromisso com a verdade, no desempenho técnico da minha função de reportador dos fatos, escrivão do cotidiano. Era tão incômodo ouvir o que eu dizia quanto difícil desmentir o que eu divulgava. Cometi o pecado mortal de incomodar os manipuladores da verdade e os donos do poder. Não por mera coincidência, em plena democracia, me tornei um dos jornalistas mais processados e condenados, principalmente por outros cidadãos que alegam intimidade com o jornalismo, já que possuem empresa jornalística. Com o toque sugestivamente kafkiano de que, queixando-se de serem vítimas de minhas inverdades, não utilizam seu enorme poder de comunicação para contrapor a elas suas verdades, em debate público. Pelo contrário, fazem da técnica do silêncio, combinada com a utilização do maleável poder judiciário, enquanto força pretoriana a serviço dos seus objetivos e caprichos, o instrumento para me esmagar e destruir.
Felizmente, a solidariedade de pessoas como os dirigentes da Abraji impede que a alegoria de um Prometeu atado à rocha desnuda de floresta, para receber cirúrgicas bicadas diárias de magistrados e falsos jornalistas, se consume. No entanto, minha permanência em Belém, a perda da minha capacidade mínima de deslocamento nestes últimos longos e sofridos anos, com 33 processos judiciais em 17 anos, 19 deles promovidos por três dos oito sucessores de Romulo Maiorana pai no império do grupo Liberal indica que os bárbaros estão vencendo. É a realidade, mas não é uma boa moral. Convido todos vocês, neste dia, a não aceitar essa moral depravada e apostar na utopia de que o jornalismo, como aconteceu nas páginas do Estadão entre as décadas de 70 e 80 do século passado, volte a ser o retrato sem retoques da Amazônia, cheio de verdade e indignação.
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Pintão, o repórter
Logo que assumi (por curtíssimo período, de três meses) a chefia de reportagem de A Província do Pará, em 1971, decidi dar um curso de jornalismo para recrutar novos repórteres. Três foram aprovados nessa iniciação, desenvolvida na própria redação do jornal: Ademir Silva, Guilherme Augusto Pereira e Raimundo José Pinto (José Augusto Potiguar tomou outros rumos, tornando-se procurador da república). Meu irmão estava então com 20 anos, dois anos mais novo do que eu. Ficaríamos juntos na profissão pelos 18 anos seguintes.
Ele me sucedeu como correspondente de O Estado de S. Paulo quando fui para a sede, um ano e meio depois. Voltei a Belém para criar a primeira sucursal regional da empresa e ele se manteve no lugar. Permaneceu quando o projeto fez água e a brilhante equipe formada foi se desfazendo. Ninguém jamais questionou a relação de parentesco: Zé se firmara por seu valor. O mesmo valor que o credenciou a ser presidente do sindicato dos jornalistas, em 1982. Quando deixei o cargo, ele foi vice-presidente de Emanoel Ó de Almeida, mas podia ter sido o meu candidato sem o risco de nepotismo. O intervalo, porém, foi importante. Nunca mais ocupei qualquer posição na diretoria, cargo de sacrifício, que só os mal intencionados (ou masoquistas) querem bisar na íntegra. Raimundo ganhou a eleição sem precisar da minha participação.
Durante 15 anos dividimos o escritório do Estadão em Belém, cobrindo o Pará e, às vezes, a Amazônia toda, para aquele que era o mais influente jornal do país (posição que perdeu, não por acaso, quando a família Mesquita, fragmentada, deixou o topo da empresa e permitiu que sua mística virasse pó). Saí em 1989, mas ele ainda ficou por dois anos, até que a base física fosse desfeita e o serviço voltasse a ser como era antes: um único correspondente, acionado pela pauta paulistana. A transformação que operamos na cobertura jornalística da Amazônia, buscando dar-lhe autonomia e paridade, virou miragem. O exotismo amazônico voltou a ser a marca da linha editorial imposta de cima para baixo.
Quando desisti de assumir a sucursal da Gazeta Mercantil em Belém, repassei-lhe o lugar, que ele ocupou com a naturalidade das outras vezes, impondo-se na função por seu desempenho, sem abandonar o seu modo discreto e afável de exercer a chefia, como um colega e igual. E sem deixar de acompanhar os fatos, como repórter, que sempre foi, nas ruas e nos gabinetes. Dedicando mais tempo ao jornalismo científico.
Marca pessoal
Em tantos anos de parceria profissional, a relação fraterna sempre foi um detalhe. Tratávamo-nos como dois repórteres, sem diferença hierárquica, sem favorecimentos. Havia respeito entre nós, admiração recíproca. Como pessoas, éramos bastante diferentes, mas uma coisa nos unia: o humor. Quando as rodas se formavam, com outros irmãos e amigos, ou mesmo estranhos, a ironia ficava solta. Ninguém estava protegido da gozação, do chiste, da maledicência inofensiva.
Posso dizer que a maior característica de estarmos juntos na mesma profissão e na mesma empresa por tanto tempo foi a de jamais imaginarmos e arquitetarmos o mal a qualquer personagem, mesmo o mais ignóbil da cena pública. Os gostos (e desgostos) pessoais nunca contaminaram nossa pauta nem se infiltraram em nossos textos. Raimundo fez o melhor dos jornalismos de 1971 até uma semana atrás, quando o câncer, que combateu durante longos e sofridos quatro anos, o derrubou numa cama de hospital, colocando-o à mercê de sua crueldade e fatalidade.
Abracei e beijei meu irmão, dividi com ele nossas lágrimas, numa intimidade rara no nosso cotidiano de trabalho pesado. Ele sempre encarou a doença com a indestrutível vontade de viver, o sempiterno amor pela vida, pela fruição da existência, a boa conversa, a mesa apetitosa, os amigos, as pessoas queridas e o jornalismo, que foi a sua paixão. Ele superou todas as expectativas, mesmo as mais otimistas, quando da sua internação, para travar o maior combate da sua vida com altivez, com muita seriedade e, ao mesmo tempo, como se estivesse dançando o carnaval pelas ruas de Belém, num bloco, com seu pareô, seu colar de flores, seu boné, sua barba e aquele jeito característico de ser Raimundo José de Faria Pinto, marca pessoal, intransferível e que vencerá todas as formas de morte. O Pintão de todos os seus muitos amigos e admiradores, como eu. Nosso patrimônio comum.
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Julgamento
Em 18 de setembro de 1982 meu artigo diário em O Liberal foi sobre as atribulações de um jornalista quando leva a sério o seu ofício, atraindo os raios dos poderosos (‘ossos do ofício’ era o título). Vali-me de uma frase de Millôr Fernandes: ‘jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos & molhados’. No dia 8 de outubro Millôr me mandou, do Rio, um cartão manuscrito, no qual dizia: ‘Não o conheço, mas porque me citou, seu artigo me chegou às mãos. Meus parabéns. Tem um tom raro de credibilidade. Você é assim mesmo ou está me tapeando? Se é assim mesmo meus mais profundos parabéns. Você se incorpora a não mais de meia dúzia de jornalistas deste país. Um grande abraço. Millôr’.
Na mesma semana em que um juiz de Belém me condena por me atribuir a prática de delito contra a honra, reencontrar a mensagem de Millôr me fez lembrar um episódio com Carlos Heitor Cony, antes de sua vida mudar de rumo a partir do aluguel da sua pena para Adolpho Bloch, até o aviltamento com a Bolsa Ditadura. Por causa dos seus heróicos artigos no Correio da Manhã, a parir de 1º de abril de 1964, Cony foi processado pela Lei de Segurança Nacional. O juiz do caso decidiu realizar a audiência de instrução do processo no gabinete do ministro da guerra (e futuro presidente da república), marechal Arthur da Costa e Silva, autor da ação, sem qualquer pudor.
No último artigo que escreveu para o jornal, anunciando o seu comparecimento à sessão, no terreno adverso, Cony arrolou os nomes das testemunhas de acusação, todas elas desconhecidos oficiais do Exército. E citou suas próprias testemunhas, dentre elas Alceu Amoroso Lima, Otto Maria Carpeaux, Carlos Drummond de Andrade e outros intelectuais desse porte. Arrematou a crônica com um ‘considero-me julgado’.
Entre Millôr Fernandes, o juiz Raimundo das Chagas e os Maiorana, a quem devo considerar o melhor avaliador do meu jornalismo?
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)