Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O preconceito social na notícia

Que o jornalismo impresso se dirige quase integralmente para a classe média, é uma realidade que extrapola a simples percepção e se torna explícita em todas as ações de comunicação, dos editoriais às campanhas de marketing de jornais e revistas. Explica-se parcialmente por questões de mercado. Não se justifica, porém, o fato de a imprensa continuar tratando a chamada base da pirâmide social como uma fatia apartada da sociedade, quase um peso a ser arrastado.

A leitura cuidadosa dos principais jornais de influência nacional e das revistas semanais de informação revela que, quando se distancia do setor mediano da sociedade – formado, no Brasil, por cerca de 50 milhões de indivíduos – , a imprensa olha para cima – onde se deleitam os 5 milhões de ricos – com um misto de deslumbramento e indulgência. Quando olha para baixo, onde sobrevivem 123 milhões de cidadãos, vaza um distanciamento quase hostil.

Alguns jornais regionais, como O Povo, do Ceará, A Tarde, da Bahia, O Popular, de Goiânia e A Notícia, de Joinville, pelo que se pode depreender de suas versões eletrônicas, preservam características de suas comunidades e não apresentam um flagrante preconceito contra as populações menos favorecidas.

O Povo oferece um amplo espaço para problemas comunitários e não costuma vincular pobreza à delinqüência; A Tarde busca um perfil de jornal cosmopolita, com um desenho atualizado, mas não perde ocasião de ilustrar a ‘bahianidade’, dando certo colorido a temas que têm pessoas ou comunidades carentes como protagonistas. A Notícia parece ‘clean’ como a cidade de Joinville, com sua população muito homogênea e sua alta qualidade de vida, mas não esconde os problemas dos bairros pobres. O Popular tem um viés ecológico muito perceptível e aparenta um olhar mais para solidário quando a notícia vem das comunidades desfavorecidas.

Apartheid social

A chamada grande imprensa do Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul, para sermos mais precisos, conversa diretamente com a classe média e tenta manter com ela uma relação de cumplicidade, que pode estar na origem desse viés sutil que denuncia certo desprezo pela maioria que se acotovela na base da pirâmide social.

Não são incomuns referências diretas entre favelamento e criminalidade e condenações apressadas de políticas públicas tidas como assistencialistas. Mas o fenômeno se revela em sua inteireza na aprovação implícita a ações típicas de ‘higienização social’ disfarçadas de restauração urbana, praticadas frequentemente pelas autoridades municipais nas grandes cidades do Sul e Sudeste.

Basta uma leitura do noticiário sobre a ‘Cracolândia’ do centro de São Paulo ou sobre batalhas entre quadrilhas dos morros cariocas para o cidadão mediano ser induzido a interpretações simplistas da complexidade social. Da mesma forma, o noticiário sobre as últimas ações do bando conhecido como PCC e a situação dos presídios deixam escapar eventualmente o viés do ‘apartheid’ social. Os sentenciados e suas famílias são situados em caixas apartadas do nosso grande e diversificado armazém social.

Daí a vicejarem propostas controversas para a solução do ‘problema da pobreza’ é um pulo. A pobreza passa a ser vista como uma questão isolada do universo da classe média leitora de jornais e revistas, o que certamente tende a agravar o distanciamento que naturalmente surge na faixa intermediária da população, que se sente mais vulnerável aos riscos urbanos e não conta com os recursos de defesa privada que têm os habitantes do chamado andar de cima.

A imprensa deveria ser o espaço da educação cívica. Seus praticantes deveriam buscar a vanguarda do conhecimento e desbaratar o emaranhado dos preconceitos, para que cada leitor pudesse encontrar em seu diário ou semanário o estímulo à solidariedade e compaixão – naquele sentido zen que define a capacidade de viver as alegrias e angústias do outro. E não o contrário – a permanente inculpação do outro por suas inseguranças e frustrações. Cada vez que um cidadão de classe média pontifica que ‘o Brasil é assim mesmo’, ou que ‘bandido bom é bandido morto’, grava-se um ponto negativo na distância entre a realidade e o ideal da imprensa.