Qualquer lista séria dos principais jornais do mundo incluirá o Le Monde. Fundado pelo general Charles de Gaulle (1890-1970), em dezembro de 1944, era parte do programa maior de libertação da França que se seguiu ao fim da ocupação nazista na Segunda Grande Guerra. Dirigido ao longo de 25 anos por um membro da Resistência e respeitado intelectual – Hubert Beuve-Méry (1902-1989) –, o Le Monde consolidou sua posição de ‘independência’ com as denúncias de tortura perpetradas pelo exército francês na Argélia, convencendo seus leitores de que a guerra colonial ‘não era apenas uma questão política, mas era também moral’. Tornou-se, desde então, uma referência na e da França.
Depois de 65 anos de existência, o Le Monde decidiu eleger, pela primeira vez, um personagem do ano em 2009. E essa escolha recaiu sobre o presidente Lula. O tema mereceu a primeira página do jornal francês na edição de 24 de dezembro, mais capa e longa matéria na sua revista semanal.
O que é notícia?
Serviria ao interesse público saber que um dos mais importantes jornais do mundo escolheu um presidente brasileiro – qualquer que seja o presidente brasileiro – como ‘Homem do Ano’ e quais as razões que justificaram tal escolha? Constituiria esse fato uma ‘notícia’ a ser divulgada no Brasil?
Aparentemente, sim. O portal G1, das Organizações Globo, por exemplo, postou matéria às 10h46 do dia 24/12 com o título ‘Le Monde escolhe Lula como `homem do ano 2009‘.
Vejamos qual foi o julgamento dos editores dos nossos principais telejornais sobre a ‘noticiabilidade’ da escolha do Le Monde.´
O Repórter Brasil Noite, da TV Brasil, deu chamada…
O jornal francês Le Monde elege o presidente Lula o homem do ano de 2009. É a primeira vez que o diário de Paris, com 65 anos de história, faz esse tipo de indicação (ver aqui).
… e nota com o seguinte texto:
Pela primeira vez o Le Monde escolhe o homem do ano: Lula
Apresentadora Carla Ramos – Pela primeira vez, em seus 65 anos, o jornal francês Le Monde escolheu a personalidade do ano e o eleito foi o presidente Lula. Segundo o jornal, um dos mais tradicionais da França, a escolha levou em conta a projeção internacional que o presidente Lula ganhou com as iniciativas de diálogo entre os países pobres e ricos. O jornal diz que Lula mudou a cara da América Latina e transformou o Brasil em uma potência. Mas o Le Monde lembrou que o Brasil ainda tem problemas estruturais na educação, casos de corrupção e uma Justiça preguiçosa (ver aqui).
O Jornal da Record não deu chamada, mas deu nota com o texto abaixo:
Presidente Lula é eleito o homem do ano pelo Le Monde
Apresentador Celso Freitas -: O presidente Lula foi eleito personalidade do ano pelo jornal francês Le Monde. É a primeira vez, em 65 anos de história, que o jornal elege uma personalidade. Em uma reportagem de quatro páginas com o título `O homem do ano`, a revista semanal do veículo destacou a preocupação de Lula com o desenvolvimento econômico do Brasil, além dos esforços do presidente na luta contra a desigualdade social e na defesa do meio ambiente (ver aqui).
O Jornal da Band deu chamada, nota e comentário:
Jornal da maior prestígio da França elege Lula homem do ano (ver aqui).
Apresentador Ricardo Boechat – O presidente Lula foi eleito pela segunda vez o homem do ano. Depois do jornal espanhol El País, agora o título veio do francês Le Monde.
Apresentadora Ticiana Villas Boas – É a primeira vez, em 65 anos de história do jornal, que o Le Monde faz esse tipo de indicação. A publicação justificou a escolha de Lula como o homem do ano por sua trajetória de antigo sindicalista por seu sucesso à frente de um país tão complexo como o Brasil, pela preocupação com o desenvolvimento econômico, com o combate à desigualdade e com a defesa do meio ambiente.
No começo do mês, o presidente já havia recebido a mesma homenagem do jornal espanhol El País. Em um artigo escrito pelo primeiro-ministro, José Luis Zapatero, Lula foi chamado de homem que assombra o mundo.
Comentário de Joelmir Beting – Para o Le Monde, francês, Lula é o homem do ano. Agora, para a revista Time americana, o cara do ano é Ben Bernanke, presidente do Banco Central dos Estados Unidos. Pararraios da crise global, ele usa e abusa. Para Lula, a crise não passou de `marolinha´, sua versão light aqui no Brasil. Para Bernanke, ela custou um desembolso em pronto-socorro, até agora, de US$ 2,7 trilhões, ou dois PIBs do Lula (ver aqui).
O SBT Brasil também deu chamada e nota:
O presidente Lula é o homem do ano. É o que diz um dos jornais mais importantes do mundo (ver aqui).
Apresentador César Filho – O presidente Lula ganhou o prêmio de `homem do ano´ de um dos jornais mais importantes do mundo: o Le Monde, da França. Pela primeira vez, em 65 anos, o Le Monde escolheu a personalidade mais importante do ano. Lula foi eleito pela trajetória singular à frente de um país tão complexo como o Brasil. Esta é a segunda homenagem a Lula na imprensa internacional só neste mês. No dia 11, ele entrou na lista das 100 personalidades mais importantes de 2009 feita pelo jornal espanhol El País. Em um artigo assinado pelo próprio primeiro-ministro da Espanha, José Luis Zapatero, Lula foi classificado de `homem que assombra o mundo´ (ver aqui).
E o Jornal Nacional da Rede Globo, o telejornal de maior audiência do país, editado e apresentado pelo jornalista que, segundo pesquisa da Datafolha, é a personalidade que recebe da nossa população a segunda maior nota na escala de ‘confiabilidade’ entre todos os brasileiros?
Para o JN, a escolha de um presidente brasileiro como ‘Homem do Ano’ pelo Le Monde não é notícia. O assunto simplesmente não entrou na pauta do telejornal (ver aqui).
Direito a informação e censura
Qual seria a justificativa editorial do JN para, ao contrário dos outros telejornais brasileiros, sonegar de seus muitos milhões de telespectadores essa informação?
Seria pedagógico conhecer essas razões, já que o JN considera – e anuncia, inclusive, nas universidades brasileiras – que pratica o paradigma do ‘bom jornalismo’, a ser seguido por todos nós.
Seria, sobretudo, pedagógico discutir o critério jornalístico do JN à luz do direito à informação do telespectador. Esse direito tem sido veementemente evocado e defendido, não pelo seu sujeito, o cidadão, mas por grupos de mídia concessionários do serviço público de radiodifusão na permanente e incansável campanha que movem contra as ‘ameaças’ de censura advindas do que consideram um Estado autoritário, incluindo decisões judiciais.
Seria a censura – partindo de onde? – uma possível justificativa para a omissão do JN, inexplicável do ponto de vista jornalístico?
Até que as razões sejam tornadas públicas, o telespectador do JN terá que se contentar com esse ‘presente de Natal’ às avessas, no 24 de dezembro de 2009: omitir e esconder uma informação à qual ele – o telespectador – tem direito.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)