Teve grande repercussão o recente pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticando a imprensa brasileira na cobertura da crise que o país atravessa. Lula chegou a comparar inclusive a postura da mídia nacional com a da Venezuela, em sua maioria totalmente hostil ao presidente Hugo Chávez. Imediatamente, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) saíram em defesa da imprensa brasileira, tendo o presidente Maurício Azedo (ABI) utilizado o argumento de que a mídia se declarou contra o impeachment. Já a direção da Fenaj assinalou que a imprensa cumpre o seu papel e que Lula não será o primeiro nem o último chefe de governo a se queixar de denúncias.
O tema é bastante complexo e remete a discussões intermináveis. Na verdade, já que se sente discriminado pela imprensa, e é possível que isso aconteça em relação a determinadas publicações, ao invés de se pronunciar dessa forma, dando margem a interpretações diversas, inclusive a das referidas entidades, Lula poderia ter sido mais bem orientado pela assessoria do setor de comunicação. Só que o governo federal preferiu agir igual aos anteriores governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Fernando Collor, José Sarney, para não falar do período dos generais de plantão.
A prioridade desses governos sempre foi a grande mídia conservadora, orientando toda a sua publicidade, que não é pouca, para esse setor. No caso deve-se fazer uma separação do período militar, quando os governos de fato não permitiam nenhum tipo de contestação e o órgão de imprensa que porventura saísse da linha, vide o Correio da Manhã de Niomar Muniz Sodré, era simplesmente alijado e os anunciantes recebiam a ordem e intimação para não darem um tostão em publicidade para o jornal opositor. Niomar Muniz Sodré teve de arrendar o jornal para um grupo de empreiteiros (família de Marcelo Alencar). Em pouco tempo o Correio da Manhã acabou.
Antecedentes históricos
Feito esse parêntese, vale a pena lembrar o que houve no período do governo do presidente Getúlio Vargas. Lá se vão mais de 51 anos, mas é salutar recordar o que se passou então com a Última Hora. O jornal de Samuel Wainer, que tinha uma linha nacionalista e popular, sofreu uma das maiores campanhas moralistas que se tem notícia na história da imprensa brasileira. A direita, capitaneada pelo jornalista e político Carlos Lacerda, fazia uma campanha furiosa contra o jornal, acusando Wainer de ter privilégios, quando a Última Hora recebia percentualmente as mesmas quantias em publicidade que o governo concedia à grande imprensa conservadora. Ou seja, O Globo, O Estado de S. Paulo, os jornais dos Diários Associados, por exemplo, que combatiam ferozmente Vargas, nunca deixaram de receber publicidade do governo.
A gritaria da direita foi tanta que a UDN, o partido golpista da classe média, conseguiu emplacar uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra a Última Hora por supostos empréstimos do Banco do Brasil. A história demonstrou que tudo não passou de uma armação política sem fundamento. As elites nacionais não se conformavam com a existência de um jornal popular nacionalista, em meio a órgãos de imprensa, para usar uma expressão da época, comprovadamente entreguistas.
Equívocos desde o início
Pois bem, depois desse novo parêntese histórico, vale tentar analisar o que acontece hoje. Logo no início do governo, Lula fez a opção de privilegiar a Rede Globo, concedendo com exclusividade sua primeira entrevista ao Jornal Nacional. E assim caminhou o governo Lula, em céu de brigadeiro. Esqueceu-se por completo, por falta de assessoria política, principalmente no setor de comunicação, que, além da tradicional grande imprensa conservadora, existe uma imprensa alternativa à grande mídia, que tem sido ignorada pelos governos do período democrático. E está sem condições de resistir, por falta de um mínimo de verbas publicitárias.
Tudo ia muito bem, sem queixas, na base de elogios do governo à imprensa, que omitia a existência de uma imprensa alternativa, até o início da crise política, que deu munição à grande mídia conservadora. Lula esquecera de que essa grande mídia conservadora nunca morreu de amores por um presidente com a suas origens. Passou a sofrer uma campanha avassaladora de publicações como a Veja, por exemplo, e assim sucessivamente. Ou será quem alguém na Fenaj ou na ABI tem dúvidas a esse respeito?
Lula e seus assessores talvez nunca tenham tomado conhecimento, ou se tomaram preferiram ignorar, de um debate travado entre as entidades que defendem a democratização dos meios de comunicação. Esse debate, por sinal, transcende as fronteiras nacionais e tem sido enriquecida por reflexões da mais alta relevância, com a do pensador italiano Umberto Eco. Segundo Eco, um país só é verdadeiramente democrático quando todos os setores sociais têm o mesmo espaço midiático. E para que isso aconteça é necessário que o poder público, nos regimes democráticos, destinem as verbas publicitárias para todos os setores da mídia em pé de igualdade.
Termômetro da democracia
O governo Lula, que se pretendia popular, tendo sido eleito para promover modificações em vários níveis, inclusive na área da mídia, simplesmente ignorou o preceito defendido por Umberto Eco, preceito esse que não é de um governo X ou Y, mas simplesmente de política pública. Até porque os governos passam e políticas públicas, permanecem.
O governo Lula preferiu destinar as verbas publicitárias para a mídia conservadora de sempre, seja ela impressa ou eletrônica. Tratou a imprensa alternativa à grande mídia conservadora a pão e água, não designar praticamente nada para esse setor.
Tratou as rádios comunitárias de forma policialesca, reprimindo igual ou mais que o governo anterior. Agora, quando do advento da nova tecnologia de TV digital, o ministro Hélio Costa parece mais uma vez querer contemplar os interesses da grande mídia conservadora com a possível adoção de um sistema de TV digital caro, só acessível às cinco ou seis redes nacionais hoje em atuação. Outra vez vai-se perder oportunidade de democratizar a TV.
Hélio Costa deu as costas para os que defendem a ampliação do sistema digital para os mais amplos setores da sociedade, preferindo, na prática, alijar as entidades representativas da sociedade brasileira que poderiam ter seus espaços garantidos com a adoção de uma tecnologia que permita o acesso democratizado às entidades, associações, sindicatos etc. Com a opção do governo Lula, representado por Costa, mais uma vez um espaço midiático, que poderia ser verdadeiramente democratizado, ficará sob o controle de uns poucos – os de sempre. Trata-se, portanto, de uma discussão política e não apenas técnica como tem priorizado a grande mídia conservadora de um modo geral.
Tarde demais?
Lula imaginou que nada disso seria importante, pois continuaria merecendo, se não o apoio, pelo menos a simpatia ou o silêncio dessa mídia conservadora contemplada com a publicidade governamental.
Agora, quando está entrando na reta final do seu governo, em meio a uma crise política aproveitada pela direita, em grande medida municiada pelas trapalhadas do PT, que também fez a opção pelo conservadorismo, Lula chega à conclusão de que está sendo vítima do ‘denuncismo’ da imprensa brasileira. Se tivesse tido, com a ajuda de sua assessoria do setor midiático, uma outra postura, talvez não estivesse lamentando tamanhos dissabores.
Qualquer governo que continue a adotar uma política na área de mídia como a de Lula, de Fernando Henrique Cardoso e outros, não estará contribuindo para a consolidação da democracia na acepção da palavra de Umberto Eco. Estará, como sempre, alijando setores representativos do movimento social.
Agora talvez seja tarde para Lula. Possivelmente o governo não terá mais tempo hábil para promover essa transformação democrática e histórica. Arcará com as conseqüências de priorizar o espaço midiático conservador.
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Jornalista