Quando estudarem a redemocratização brasileira, os bons historiadores do futuro descreverão a liberdade de imprensa como um dos maiores legados da Nova República. Os veículos de imprensa são, hoje, porta-vozes da sociedade e indutores de ação governamental. Quanto mais o forem, melhor.
Mas, no campo da segurança pública, em especial na cobertura do sistema brasileiro de justiça criminal, a grande imprensa parece ainda não haver conseguido encontrar o fio da meada. As reportagens muitas vezes se inspiram em declarações isoladas e têm dificuldade de distinguir explicações desinteressadas de versões corporativas; os editoriais mostram sintomas de problemas, não raro na forma de decisões judiciais que agridem o senso comum ou de descompassos entre autoridades, mas nem sempre discutem os problemas em si.
É verdade que as instituições encarregadas do combate ao crime têm um longo caminho a percorrer no aperfeiçoamento de seu diálogo com a imprensa. Elas ainda confundem discrição com introversão e precisam resistir à tentação de confundir comunicação social com propaganda. Também é verdade que a imprensa poderia ajudá-las com um esforço ampliado de compreensão do papel de cada uma no sistema de justiça criminal e do funcionamento do próprio sistema em seu conjunto.
O balanço das operações da Polícia Federal publicado pelo jornal O Globo no domingo (12/11) reflete essas verdades: o alerta foi importante, mas a informação não era clara sobre dois pontos: nem as operações da Polícia Federal são exclusivas da Polícia Federal, pois são controladas pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, nem os processos judiciais são realidades apartadas do que a investigação policial consegue apurar.
Afinidades eletivas
A menos que presumamos reinarem a preguiça e a estupidez entre os operadores do sistema de justiça criminal, o que os leva obter resultados tão modestos devem ser as normas e a cultura jurídica que lhes servem de parâmetro, assim como um grosso caldo de práticas tão ruins quanto antigas dentro das instituições e nas relações entre elas. Reconhecer que o problema do sistema é o próprio sistema exige algum esforço de raciocínio e muita atenção aos fatos: envolve, principalmente, a superação de algumas noções preconcebidas, como a de que o Brasil tem boas leis, mas seus aplicadores são inexperientes e precipitados.
Lembremos alguns exemplos notórios – e de modo algum isolados – das boas leis brasileiras: dirigir a alguém uma séria ameaça de morte não enseja prisão em flagrante nem preventiva; e rende, no final, o pagamento de algumas cestas básicas ou, no máximo rigor da lei, seis meses de detenção em regime aberto ou semi-aberto (sabido que o máximo rigor da lei é quase uma abstração, aplicável apenas quando o crime é cometido por reincidentes e nas piores circunstâncias).
Nossa Constituição, por sua vez, declara que, enquanto houver o mais improvável recurso judicial, o réu deve ser considerado inocente; ele já está condenado por um juiz e sua condenação já foi confirmada em segunda instância, mas, se ele recorrer ao Supremo Tribunal Federal, não cumpre pena até que seu recurso seja julgado. E o prazo de prescrição continua correndo.
Uma abordagem jornalística do problema da segurança pública ao mesmo tempo mais sofisticada e mais combativa, em que as disfunções do sistema de justiça criminal deixem de ser tratadas como exceções e seus êxitos sejam recebidos com ceticismo e ponderação – em que não haja, enfim, afinidades eletivas nem escolha de heróis e vilões –, poria a imprensa mais perto do papel destacado que ela desempenhou, por exemplo, nas discussões sobre o combate à inflação e a responsabilidade fiscal. O Brasil agradeceria mais uma vez.
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Procurador da República no estado do Rio de Janeiro