E os produtores de informação? O que aconteceu com eles? O questionamento vem de um diálogo imaginado pelo jornalista alemão Richard Gutjahr [ver aqui], supostamente em 2049, no qual um ser futurista mostra-se incrédulo acerca de hábitos midiáticos característicos do nosso tempo. Não existia Facebook? Se você não ligasse a televisão no horário determinado a informação já não estaria mais disponível? Havia gente que ganhava dinheiro com informação? Como assim?
O texto que imagina esse diálogo surgiu em minha timeline quase ao mesmo tempo em que a inacreditável matéria da revista Época sobre “os documentos da Odebrecht que o Itamaraty quis esconder” [ver aqui] gerava repercussão entre colegas de ofício. Especulava-se em reportagens anteriores que o ex-presidente tivesse recebido benefícios da empreiteira enquanto estava no poder e que o Ministério das Relações Exteriores estariam tentando evitar que a imprensa tivesse acesso a correspondências envolvendo a empresa e o então presidente.
O inacreditável nesse caso é que quando finalmente o esforço de reportagem da Época teve efeito, ou seja, quando os documentos foram disponibilizados pelo Itamaraty, a revista se absteve de interpretá-los. Sob a cartola “exclusivo”, Época divulgou um arquivo de 2 mil páginas com telegramas citando a empreiteira durante o governo Lula sem qualquer tratamento jornalístico que minimamente apontasse alguma razão pela qual, supostamente, o Itamaraty estivesse querendo esconder tais documentos.
Prática disfarçada de jornalismo colaborativo
Em um texto de três parágrafos, a revista enumera justificativas para a publicação dos arquivos brutos, como o fato de as páginas terem sido entregues impressas e fotografadas uma a uma ou o arquivo em PDF não permitir pesquisas por palavra-chave, para, ao final, delegar aos leitores a tarefa de encontrar a notícia: “Ajude a equipe de Época a analisar os documentos. Se encontrar, nos telegramas, algo que mereça a nossa atenção para uma reportagem, envie um e-mail.” Ora, o que aconteceu com os jornalistas?
Ao abrir mão do seu papel interpretativo, os jornalistas estão deixando escapar uma das últimas propriedades que poderiam justificar sua permanência na sociedade, já que as “chaves dos portões” do espaço público não lhes pertencem mais há algum tempo. Ainda que a aceitação de uma visão construcionista do jornalismo exponha a incidência de ideologias, relações de poder, tendências políticas, favorecimento econômico e outros fatores nos processos produtivos da notícia, a capacidade de interpretar, contextualizar e certificar informações é uma das poucas vantagens que o jornalista ainda preserva em relação aos algoritmos que operam como os verdadeiros gatekeepers contemporâneos.
A propósito, no futuro imaginado pelo jornalista alemão citado na abertura deste artigo, os jornalistas terão sido substituídos por robôs autoconscientes capazes de escrever e as empresas de mídia terão ficado em um passado nem tão distante em que os jornalistas eram tidos como pessoas respeitáveis que coletavam e distribuíam informações, pelas quais outras pessoas pagavam para ter acesso.
Se com um produto jornalístico acabado já não há um modelo lucrativo de negócio para o jornalismo na internet, não será delegando aos leitores a tarefa de interpretar as informações que o mercado da mídia se tornará economicamente sustentável nesse ambiente. Sem contar que essa prática, disfarçada de jornalismo colaborativo, pouco contribui para a manutenção da credibilidade dos jornalistas como pessoas respeitáveis que coletam e distribuem informações. E se o enxugamento progressivo das redações parece uma explicação possível para o apelo da Época aos leitores, então é mesmo questão de tempo para que surjam robôs escritores em condições de tornar o jornalista uma profissão obsoleta.
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Taís Seibt é jornalista e doutoranda em Comunicação