A mais recente ‘comoção nacional’ (o assassinato de Isabella) assume, pelo tanto de exposição na mídia, destaque bem mais acentuado do que a praga disseminada pelo mosquito transmissor da dengue, fato recorrente a perpassar por governos (municipal, estadual e federal) dos mais diferentes matizes.
De antemão, também deixo claro que o enfoque minimizado da doença e o foco maximizado do ‘caso Isabella’ não passam por práticas diversionistas desse ou daquele veículo, por ingerência desse ou daquele governo (municipal, estadual ou federal). A bem da verdade, ando um tanto saturado por textos que vociferam a favor (ou contra) esse ou aquele governante, partido e equivalentes. A origem dessa saturação talvez diga respeito ao reconhecimento de problemas gravíssimos cujas raízes e explicações não se encontram na política partidária, seja remota, seja presente. Igualmente, as questões cruciais não habitam redutos gerados por programas econômicos (antes ou agora), mas localizam-se, em proporções intensas, na (de)formação educacional e cultural, sem que estas duas áreas (educação e cultura) tenham a ver, obrigatoriamente, com gerenciamentos da política institucional.
A questão central
É possível que um dia compreendamos o seguinte princípio regulador: na singular história brasileira, tudo de vigoroso que por nós foi construído pouco teve a ver com benefícios de políticas governamentais. Na outra ponta, também perceberemos que muito do quanto degradamos teve a ver com malefícios dessas mesmas políticas. Sei que tal configuração pode produzir algum desconforto em certo perfil de leitor. Todavia, deixar registrar tal avaliação implicaria meu próprio desconforto.
Ao empenhar-me na ‘despartidarização’ dos efetivos problemas nacionais, tento oferecer um atalho no qual o receptor, se desejoso de caminhar para a frente e com seus próprios pés, terá de ser capaz de superar os entraves criados, em favor da adoção de um ‘estado de racionalidade cognitiva’ de modo a minimizar as contaminações ‘apaixonadas’. Aos eventuais leitores, declaro, com absoluta honestidade, que há muitos anos substituí a ‘paixão política’ pelo incômodo (mas necessário) ‘distanciamento crítico’. Confesso que o primeiro gerava mais bônus emocionais; o segundo produz mais ônus conceituais. Paciência. Quando a consciência abre certa porta, é impossível encontrar, para ela, um cadeado eficaz, a ponto de a trancar. A partir daí, resta o caminho possível: seguir a estrada, sem maiores sonhos, controlando devaneios e administrando frágeis fronteiras entre ilusão e frustração.
Caros e tolerantes leitores, bem compreendo que lhes escrever não significa ter o direito de fazer terapia (nem propor alguma para vocês). Por outro lado, ao sentir, em mim, certa corrosão diante do que se apresenta aos meus olhos, fico a imaginar quantos mais têm de digerir uma realidade tão indigesta. Tudo bem. Prometo não mais alongar o que motivou a presente escrita.
Fatos recentes me exigem desdobrar reflexões pontuadas em artigo publicado na edição anterior do OI. Que o assassinato da indefesa criança de apenas cinco anos tem ocupado os pontos nobres na diagramação dos principais jornais é algo reconhecível por qualquer olhar de quem passa pelas bancas espalhadas ao longo do país. Que a mídia (impressa e eletrônica) venha incensando, até o limite máximo, tudo que de claro e de obscuro o acontecimento reúne é, igualmente, registro perceptível. Às duas observações, some-se uma terceira: o empenho da mídia em, passo a passo, realimentar o receptor com noticiários que, supostamente, formam a compreensão dos leitores acerca do macabro quadro no qual uma promessa de vida foi brutalmente interrompida. A questão central, porém, reside em saber as reais intenções da mídia, em função do modo como codifica sua cobertura.
Sensações x sentido
Em se tratando de ‘modelo estético’, não há muito que se indagar. Há, sim, uma estrada que, de um certo ponto em diante, no máximo, oferece duas trilhas: 1) a ‘estética da ilusão’; 2) a ‘estética do sentido’. A primeira é direcionada para um olhar que captura o mundo como uma provocação para as sensações; a segunda se inclina para estimular um olhar que oferece o mundo como um ‘desafio à razão’.
O fato que, na última sexta-feira, produziu nova dose de frenesi na cobertura do ‘caso Isabella’ foi a decisão do desembargador a favor da suspensão da prisão temporárias do pai e da madrasta da vítima. Todos os veículos de informação se fartaram com a cobertura da ‘liberação’. Como é próprio da mídia brasileira, o enfoque dado à decisão do desembargador Caio Canguçu de Almeida, quanto à suspensão da prisão temporária dos, até aqui, únicos suspeitos pela morte de Isabella, não se distanciou do propósito de referendá-la. Para tanto, os principais jornais se limitaram a reproduzir avaliações de juristas, promotores e advogados que, excluídos pequenos reparos aqui e ali, em tese ratificaram a decisão do desembargador com base no ‘caráter tecnicamente legal’. Sim, é óbvio: não se vai esperar de um desembargador uma decisão jurídica sem respaldo técnico, legal e constitucional. Segundo o desembargador, o referendo à liminar levou em conta os requisitos previstos em lei: endereço fixo, ausência de antecedentes criminais (ou policiais), além da conduta dos suspeitos no tocante a não terem dificultado o processo de investigação e coleta de possíveis provas. Será mesmo que todos os requisitos terão sido contemplados? Será que a intensidade da ‘estética das sensações’ interferiu na decisão do que deveria ser regido pela ‘estética do sentido’? Para responder a essa questão, sugiro ao paciente leitor que prossiga a leitura do próximo tópico.
‘Decisão técnica’ e ‘dever ético’
Para esclarecer o que pretendo, criticamente, pontuar, reproduzo, adiante, trechos extraídos, respectivamente, da Folha de S.Paulo e de O Globo (edições de 11/04/08). Lembro que tais matérias constavam nos jornais, desde as primeiras horas da manhã do dia no qual, às 13:00 hs., o desembargador expediu a decisão de caráter suspensivo. A questão é: 1) o desembargador leu, antes, as matérias?; 2) o desembargador não leu, antes, as matérias? Se as leu, ignorou o teor delas. Se não as leu, demonstrou absoluto descaso pela importância do jornalismo. Vamos, pois, às reproduções, destacando o fato de que havia, nos dois jornais (afora outros), chamada na primeira página a respeito das roupas que a madrasta estava usando na hora na qual o crime foi praticado:
Folha de S.Paulo – ‘De acordo com investigadores que pediram para não ser identificados, a demora para encontrar a camiseta ocorreu porque tanto Anna quanto Nardoni estariam dificultando o encontro das roupas‘ [grifo do autor].
Adiante, a matéria arrematava: ‘As peças apreendidas ontem, uma camiseta preta e um par de tênis (tipo sapatilha), estavam com Anna na carceragem do 89º DP’.
O Globo – ‘Os investigadores do 9º DP sentiram falta principalmente de um par de sapatos e de uma blusa que teriam sido usados por Anna no dia do crime. Segundo um policial que apura a morte de Isabella, somente ontem [10/04/08] os investigadores souberam que esse material havia sido levado pela madrasta para a carceragem do 89º /…/’. [grifo do autor]
Bem, mesmo não sendo jurista, estou ciente de que há um preceito constitucional segundo o qual o cidadão tem o direito de se resguardar quanto à auto-incriminação. Ocorre, porém, que a madrasta, ao recolher as roupas e calçado usados durante a ocorrência do crime, guardando-os na própria cela, incorreu no propósito de ocultação de indícios materiais (potenciais provas). Teria o desembargador o direito de ignorar esse aspecto? O desembargador não encontraria aí uma razão suficiente para, ao menos, requisitar dos investigadores depoimentos e, com isso, retardar a deliberação? Por outro lado, não é estranho que jornais, ao publicarem tais fatos, no dia seguinte à deliberação do desembargador, nada tenham retrucado? Os próprios jornais que publicaram matérias reveladoras quanto ao comportamento estranho dos únicos suspeitos, em nada conflitaram a decisão do desembargador. A situação é pífia: a impressão é a de que os próprios jornalistas reduzem a zero aquilo que eles mesmos noticiam. O fato é, simplesmente, estarrecedor. Enfim, por que nenhum repórter perguntou ao desembargador se uma ‘decisão técnica’ não entra em conflito com um ‘dever ético’? O que se cobra é que o ‘benefício da dúvida’ tem plena consistência quando o elenco de indícios se apresenta fortemente indefinido. No caso das condições que envolvem o assassinato de Isabella, a prerrogativa é reconhecível?
Morosidade da polícia
Prosseguindo numa narrativa, no melhor estilo do ‘realismo fantástico’, gênero ficcional cuja inauguração pertence à literatura latino-americana, ainda cabe acrescentar: na edição da Folha de S.Paulo (12/04/08), constam, na mesma página (caderno ‘Cotidiano 2’), as seguintes matérias: 1) ‘Delegada diz que polícia não errou ao pedir prisão’; 2) ‘Libertação foi correta, dizem especialistas’. 3) ‘Para promotor do caso, soltar o pai e a madrasta prejudicará as investigações’. Bem, o leitor que, com sensatez e isenção, tenha lido as três matérias conclui que ele, leitor, padece de alguma deficiência mental, visto que as três são, racionalmente, excludentes. Indo, contudo, à pagina seguinte, o leitor pôde encontrar a seguinte matéria: ‘Presas dizem que, nos primeiros dias, jogaram água e xingaram Anna Carolina’. Quem leu, integralmente, o texto, a certa altura, encontra tal afirmação: ‘As presas disseram que a noite de anteontem [10/04/08] foi o momento de maior tensão para ela [a madrasta]. Segundo elas, a estudante disse estar a ponto de fazer alguma revelação importante para o caso’ [grifo do autor]. ‘Mas, aí, saiu esse habeas corpus’, disse uma delas, pelo portão da carceragem.’ O que a matéria jornalística deixa consignado é que se o desembargador houvesse, ao menos, retardado sua decisão, teria permitido que o efeito da fragilização emocional de um dos detentos pudesse revelar algo elucidativo. Assim, pode-se deduzir que o desembargador, no mínimo, errou duas vezes: 1) em não considerar (ou desconhecer) as matérias publicadas horas antes de ele deliberar; 2) em não levar em conta a pressão psicológica dos detentos. Que ‘revelação importante’ teria feito a madrasta, caso ela permanecesse presa? Jamais saberemos, ou haveremos de esperar por muito mais tempo. E aí? Paciência.
A avaliação técnica parece haver superado o imperativo ético. Quando a justiça começa a guiar-se por rigorosos critérios técnicos, em prejuízo de percepções mais afeitas à ‘estética do sentido’, abre-se a perspectiva preocupante para a ‘burocratização da vida’. É preciso compreender que a dimensão subjetiva não pode ser suplantada pela rigidez insensível da tecnicalidade. Menos ainda, a inversão é cabível em áreas nas quais o foco da avaliação diz respeito ao sinuoso campo da subjetividade.
No caso do assassinato de Isabella, algo fica exposto com todas as evidências, à parte quaisquer filigranas jurídicas: 1) é inverossímil a hipótese de crime premeditado por parte de um (pai ou madrasta); 2) é inverossímil a hipótese de crime premeditado por ambos (pai e madrasta); 3) é inverossímil a hipótese de crime praticado por uma terceira pessoa, dada a total ausência de indícios – não bastasse a lógica a envolver a monitoração de imagens e minutos. Em 12 minutos, uma criança foi asfixiada, espancada e lançada, após ter sido cortada a rede de proteção (com faca e, em seguida, com tesoura). Não há tempo viável para um estranho entrar no imóvel, sem arrombamento, e praticar o ato. Tudo se encaminha, semioticamente, para o fato de ter havido um conflito familiar. Dele resultou, por impulsos incontidos da parte de um dos dois (pai ou madrasta), um ato violento e irrefletido, causando, no ser frágil, asfixia e fratura do pulso. Por fim, por equívoco de avaliação, um deles (ou os dois), considerou morta quem ainda estava apenas inconsciente (desmaiada) e, tentando escapar de um futuro horripilante, um deles teve a frieza de pegar a menina pelos pés e jogá-la fora. Que horror! Por favor, isto não é julgamento antecipado. Isto não é presunção de culpa. Isto é apenas lógica. É claro: nenhum dos dois terá pensado em matar Isabella. Todavia, os dois aceitaram, diante do irremediável, escapar de suas responsabilidades. Outro fato estarrecedor se refere à morosidade da polícia em convocar depoimentos de vizinhos do casal. Somente no domingo (13/04/08), vizinhos adjacentes ao apartamento do casal foram ouvidos. Isto é crível ou incrível?
Procedimentos negligentes
O questionamento não se esgota no que está sinalizado até aqui. Há algo a mais. Em qualquer lugar do mundo razoavelmente organizado vigora um princípio elementar na logística investigativa: há um crime e o local é imediatamente lacrado e vetado para quem não seja detetive e perito. No Brasil, não. Houve, no local do crime, dois fatos ‘surrealistas’: 1) equipes de peritos foram ao imóvel inúmeras vezes (cinco ou seis); 2) tiveram acesso ao imóvel cinegrafistas. O programa A Tarde é sua (Rede TV) exibiu, na edição de sexta-feira (11/04), filmagens de dentro para fora, mostrando a queda vertical da vítima por 20 metros de altura.
Quem permitiu câmeras e profissionais de telejornalismo ingressarem no interior do imóvel, interferindo no cenário do crime? Por que peritos, horas após o crime, não promoveram a varredura completa, utilizando todos os recursos disponíveis para coleta de dados? Trata-se de procedimentos elementares. O local de um crime deve ser preservado, isolado e mapeado em tempo hábil, a fim de impedir desfigurações, descaracterização de impressões digitais, posição de objetos etc.
Ao que parece, elementares lições da processualística criminal foram ignoradas, seja pelos agentes encarregados de a cultuarem, seja pelos profissionais de comunicação, ao silenciarem sobre tais distorções. Para a mídia de perfil acrítico, importa cobrir a saída dos detentos para o IML. Assim, o primado das sensações obscurece o preceito da reflexão e do distanciamento crítico. Somente na exibição do Fantástico (programa da TV Globo, edição de 13/04/08), encontram-se depoimentos a respeito de procedimentos absolutamente negligentes adotados por policiais e peritos, no tocante à interdição do imóvel. As críticas que pontuei já constavam no meu texto escrito no sábado. Ao saber, porém, que o Fantástico prometia entrevistas e revelações inéditas, passei e-mail para o editor do OI, solicitando o envio do presente artigo após o programa mencionado. Com a gentileza costumeira, Luiz Egypto me concedeu sinal verde.
Exacerbação ou frustração
Como já esperava, a promessa do Fantástico ficou bem aquém de qualquer expectativa transformadora do olhar crítico. Foi, porém, interessante observar, uma vez mais, a sintaxe semiótica que o Fantástico preserva há décadas: o teor crítico tem de ser apagado, em favor do apelo emocional e/ou pelo fato inusitado. O ‘esquema’ não falhou. Os depoimentos críticos referentes ao assassinato de Isabella ocuparam o início da matéria. Da metade para o final, predominaram depoimentos emocionais (familiares dos suspeitos). Em seguida, a matéria anunciada remetia ao ‘insólito’: o ‘santo que recebe salário’. Diga-se de passagem que a cobertura sobre o caso no programa Domingo Espetacular (exibição da TV Record, no mesmo horário do Fantástico) seguiu exatamente igual formato. Nessa sintaxe, qualquer tentativa de reatividade crítica se dissipa.
No regime midiático, centrado na ‘estética das sensações’, não interessa o investimento na elevação de massa crítica. Em havendo aprimoramento do olhar crítico-reflexivo do público-receptor, quantos iriam à porta dos distritos para esperarem pela saída dos suspeitos? Não haveria pauta para preencher espaços em jornais e tempo em televisão. O melhor, portanto, para um modelo midiático que privilegia a ‘estética das sensações’, em prejuízo da ‘estética do sentido’, é continuar investindo na ‘promoção de emoções’, em detrimento da ‘qualificação e consistências das percepções’. Bem, a semana entrante é decisiva para a definição do desfecho do assassinato de Isabella: serão liberadas as avaliações de todos os exames periciais. É muito difícil (ou impossível) surgirem dados ‘surpreendentes’, fora do que a simples lógica já deduziu. Contudo, para quem é regido pelo sagrado ‘império da técnica’, ou, para quem tanto persegue o território excitante das emoções, os próximos dias tanto poderão fornecer altas doses de exacerbação subjetiva quanto letais overdoses de frustração. Esperemos o desfecho.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha, Rio de Janeiro, RJ