Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O que está por trás da “#UseAmarelo pela Democracia” proposta pela Folha de S. Paulo

(Foto: Paulo Pinto AGPT/Fotos Públicas)

Recentemente, a Folha de S. Paulo, levando em consideração o agravamento da crise política que ocorre paralelamente à crise sanitária, lançou a campanha “#UseAmarelo pela Democracia”.

Em editorial publicado no domingo (28/6), o jornal defendeu “resgatar a cor amarela como símbolo da democracia”, lembrando do movimento Diretas Já.

“Urge voltar ao tema, e a Folha busca inspiração no seu papel histórico das Diretas Já, para resgatar a cor amarela como símbolo da democracia. Assim, as vitrines das edições dominicais trarão uma faixa dessa cor com os dizeres #UseAmarelo pela Democracia, e o slogan da Folha desde 1961, ‘um jornal a serviço do Brasil’, passa temporariamente para ‘um jornal a serviço da democracia’ até as próximas eleições presidenciais”, apontou o periódico da família Frias.

Num primeiro momento, não deixa de ser irônico o fato de o Grupo Folha, que apoiou o golpe de 1964, compactuou com o regime militar e esteve na linha de frente do processo político que culminou na queda da ex-presidente Dilma Rousseff, se apresente como paladino da democracia. Mas a questão é bem mais complexa.

Ficar atento às movimentações discursivas da grande mídia é um excelente exercício hermenêutico para compreender o que as elites econômicas estão pensando em um determinado momento e, consequentemente, não se deixar ser manipulado por interesses alheios.

A campanha “#UseAmarelo pela Democracia” é mais uma manobra discursiva não só da Folha, mas de toda a grande imprensa, que, além de negar as históricas participações em movimentos golpistas, busca esconder o apoio concedido a Jair Bolsonaro em 2018, monopolizar a oposição ao atual governo federal e ocultar a chamada polarização ideológica.

Com as falas e ações cada vez mais autoritárias do presidente e seus seguidores, a grande imprensa – que retoricamente busca aparentar transparência, neutralidade e compromisso com valores democráticos – deve afastar qualquer indício de sua participação na paternidade tanto de Bolsonaro quanto do bolsonarismo. É o famoso dito popular: “filho feio não tem pai”.

É importante frisar que, antes das jornadas de junho de 2013, quando a imprensa hegemônica desempenhou um papel decisivo na intensificação do antipetismo, Bolsonaro era apenas um apagado parlamentar do baixo-clero e a extrema direita estava restrita a deep web.

No entanto, a extrema direita foi retirada do armário para engrossar as manifestações contra o PT e, não obstante, Bolsonaro foi unanimemente apoiado pelas elites na disputa presidencial contra Fernando Haddad. Ambas ações contaram com apoio irrestrito da grande mídia, incluindo a Folha de S. Paulo.

A tese central dessa estratégia política partia do princípio de que, ao assumir a presidência, Bolsonaro deixaria de lado o extremismo e colocaria em prática a agenda econômica neoliberal sem maiores problemas.

Como se sabe, principalmente após os desdobramentos da pandemia do coronavírus, Bolsonaro e o bolsonarismo – em suas empreitadas pelo fim do isolamento social e pela completa reabertura da economia – intensificaram a radicalização ideológica. Já a negligência e o negacionismo do presidente frente a Covid-19 fizeram com que seus índices de popularidade caíssem vertiginosamente.

Diante dessa realidade, os grandes grupos de comunicação, que não são ingênuos, sabem perfeitamente que, numa sociedade polarizada, o aumento da impopularidade de Bolsonaro tende a favorecer o polo oposto: a esquerda.

Por isso a necessidade de neutralizar organizações partidárias e movimentos sociais dessa vertente política, através de propagandas como “#UseAmarelo pela Democracia”, o que significa, na prática, concentrar qualquer tipo de antagonismo ao bolsonarismo em torno de iniciativas suprapartidárias, que possam unir adversários ideológicos sob a liderança da elite.

Em outros termos, elite e mídia, que depuseram Dilma Rousseff e colocaram Bolsonaro no poder, agora querem monopolizar a oposição e, se for o acaso, liderar um futuro governo; sem participação popular, obviamente.

Para tanto, as estratégias editoriais da mídia são eliminar a presença de partidos políticos de esquerda nas manifestações de rua (sobretudo aqueles mais combativos, daí o famoso lema “abaixe a bandeira!”) e “apoiar” movimentos sociais que deixem de lado o “radicalismo” em favor de uma suposta unidade nacional (vestindo amarelo, é claro).

Não por acaso, organizadores do protesto pró-democracia, intitulado “Somos Democracia”, recentemente divulgaram um manifesto pedindo para que os manifestantes utilizem “camisas amarelas do Brasil, relacionadas ou não com a seleção brasileira”.

Danilo Pássaro, um dos líderes do movimento – “coincidentemente” bastante elogiado nos últimos dias em matérias não só da Folha, mas também do Estado de São Paulo e O Globo – declarou ao periódico da família Frias que o uso do amarelo é “um resgate das nossas cores e da nossa bandeira”.

Por outro lado, é importante frisar que, no âmbito político, para movimentos sociais e partidos políticos à esquerda, optar pelo amarelo em detrimento do vermelho (cor que simboliza inúmeras lutas sociais travadas ao longo do tempo) é muito mais do que uma mera questão simbólica de tonalidade. Trata-se da modificação de direcionamento ideológico de todo um movimento. Não por acaso, o lema “a nossa bandeira jamais será vermelha” é um dos preferidos dos setores conservadores.

Só para ficarmos em exemplos recentes, a associação entre amarelo e mobilizações de rua nos remetem ao fracasso das Diretas Já, à campanha eleitoral de Fernando Collor, ao rumo conservador tomado pelas jornadas de junho de 2013, à classe média pseudo-moralista que foi às ruas pedir pela perda de direitos democráticos e pelo impeachment de Dilma Rousseff, a um certo pato inflável e aos grupos de extrema direita que pleiteiam por “intervenção militar constitucional”.

Como já dizia o pensador britânico Samuel Johnson, “o patriotismo é o último refúgio do “canalha”. Para Millôr Fernandes, em nosso país, é o primeiro. Lembrando Tom Jobim, definitivamente, o Brasil (ou pelo menos as armadilhas discursivas de sua mídia) não é para amadores.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor dos livros 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV) e Crônicas no Jornal O Tempo: o olhar de Francisco Ladeira sobre o mundo contemporâneo (Vicenza Edições Acadêmicas).