Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O que o césio não ensinou

A cobertura jornalística do acidente nuclear na usina de Fukushima, no Japão, após abalos na sua estrutura provocados pelo terremoto e pelo tsunami de 11 de março, lembra muito a cobertura do acidente radioativo com o césio 137, em Goiânia. Em setembro de 1987 – o dia ainda é impreciso – os catadores de papel Roberto e Wagner encontraram uma cápsula em um centro radiológico abandonado no centro de Goiânia, nas ruínas da antiga Santa Casa de Misericórdia, demolida para dar lugar a um centro de convenções. Roberto Santos e Wagner Mota levaram a cápsula em um carrinho de mão para a casa de um deles, na Rua 57, no centro, a poucos quarteirões da ruína onde a encontraram. Com muito esforço, conseguiram violar a cápsula e chegaram a um pó azul e brilhante.

Vizinhos e amigos tiveram contato com o pó até o dia em que os catadores levaram o material para a casa de Devair Ferreira, dono de um ferro-velho na Rua 26-A, Setor Aeroporto, bairro próximo aos locais onde a cápsula foi encontrada e, posteriormente, violada.

Maria Gabriela, mulher de Devair, percebeu que todas as pessoas que tiveram contato com aquele mágico pó azul estavam doentes. Ela já não se sentia bem quando tomou a decisão de se desfazer daquela peça. Convocou Israel e Admilson, funcionários do ferro-velho, para carregarem o material em uma sacola e foram, de ônibus, até a Vigilância Sanitária. Um funcionário do órgão suspeitou ao ouvir os relatos de Gabriela e chamou um físico, professor da Universidade Federal de Goiás.

Histeria e preconceito

O físico chegou com um contador Geiger e se assustou quando ele travou na aproximação com a cápsula violada. Naquela noite, 29 de setembro de 1987, descobriu-se que se tratava de material radioativo. A partir desse dia, a vida de Goiânia mudou. Mais de duas centenas de pessoas estavam contaminadas, 14 gravemente doentes. Quatro pessoas morreram alguns dias depois: Gabriela, os dois funcionários do ferro-velho e Leide das Neves, uma criança de apenas seis anos de idade, sobrinha do marido de Gabriela, que tinha ingerido o césio ao comer um ovo cozido com as mãos sujas depois de brincar com o pó brilhante.

Repórter da TV Brasil Central, participei da cobertura daqueles dias dramáticos: a doença das vítimas, a incerteza sobre seus futuros, as mortes; o apedrejamento do caixão de chumbo de Leide das Neves e de Maria Gabriela por moradores das imediações do cemitério, temerosos de que seus corpos contaminassem o local; a polêmica sobre o destino das toneladas de lixo radioativo; a construção do depósito provisório e, depois, do definitivo; as visitas de especialistas em energia nuclear de toda parte do mundo, Japão, Rússia, Estados Unidos, França, Reino Unido etc. Tudo isso acompanhado pelo exército de técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) que montou quartel em Goiânia. Os homens de macacão amarelo dos pés à cabeça, contador Geiger na mão e máscara no rosto passaram a compor a paisagem de Goiânia.

Transcorridos quase 24 anos daquele que é tido como o maior acidente radiológico do mundo, o que ainda chama a atenção foi o despreparo da mídia para aquela cobertura. Sem noção de conjunto, movida pela desinformação e pelo senso comum, a mídia exagerou no tom catastrofista, perdeu tempo com fatos menores, mas com grande poder de atrair a curiosidade pública; supervalorizou o medo e a ignorância coletiva e contribuiu para criar um clima de histeria coletiva que desaguou em preconceito contra Goiânia, seus produtos e sua população.

Mais racionalidade, menos alvoroço

O acidente foi gravíssimo e deixou sequelas, mas a falta de informação sobre como lidar com fatos como esse expôs a fragilidade da mídia, que ficou devendo uma cobertura mais serena, que concentrasse esforços menos no espetáculo e mais na dimensão racional dos acontecimentos.

A cobertura do acidente em Fukushima expôs novamente essa mesma fragilidade. Os jornais impressos têm extrema dificuldade em aprofundar a cobertura factual antecipada pelo rádio, TV e internet. Mostram-se perdidos diante da complexidade do tema. Assim, correm atrás de especialistas em energia nuclear mundo afora e expõem opiniões de quem fala por hipótese – já que a maioria acompanha os trabalhos em Fukushima à distância – como se fossem fatos, contribuindo para criar mais confusão e perplexidade do que para esclarecer.

A imprensa novamente perde tempo nos detalhes, que não representam o conjunto dos acontecimentos, mas dão a falsa impressão de cobertura ampla e completa e, novamente, contribui para o clima de histeria coletiva contra o Japão, seus produtos e, claro, sua população.

Depois de 24 anos do acidente com o césio, a imprensa não aprendeu a lidar com racionalidade e com menos alvoroços histéricos ao deparar com temas que envolvem a energia nuclear.

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Editora-chefe do jornal O Popular (Goiânia)