Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que será do mundo sem o Libération?

Um pedido de socorro deixou clara a arriscada situação do diário francês de esquerda Libération, fundado em 1973 pelo filósofo Jean-Paul Sartre e pelo jornalista Serge July (que ficou à frente da direção da Redação por 33 anos). Numa página dupla publicada na edição de quinta-feira (14/9), o jornal lançou um apelo aos acionistas e aos leitores para virar uma “página difícil na história do Libération”. No chapéu, figurava: “Aos nossos leitores. Explicações sobre uma situação interna inédita e uma crise financeira sem precedentes” [clique aqui para ler o editorial, em francês].

O pedido de mais investimentos pelos acionistas e de uma mobilização importante por parte dos leitores aconteceu algumas semanas antes do fim de um período de “cogerência” do jornal. Essa “administração mútua” foi decidida em 29 de junho e deve terminar em 1° de outubro. É presidida pelo jornalista Vittorio de Filippis (ex-presidente da Sociedade Civil dos Empregados de Libération – SCPL, e escolhido pelos jornalistas para substituir Serge July na chefia da Redação) e por Philippe Clerget, ex-diretor do jornal Usine Nouvelle.

Clerget representa o acionista majoritário, Edouard de Rothschild, cuja entrada no jornal, em abril de 2005, havia gerado manchetes polêmicas na imprensa francesa por causa da imagem paradoxal do “jornal independente” gerenciado por um representante da aristocracia financeira européia. Sobre esse assunto, o enorme editorial do Libé faz questão de dizer que…

“…a cada etapa [de realização do jornal] a palavra de ordem sempre foi a autonomia. O que protege o jornalista do acionista e de seus anunciantes. Essa independência da redação é herança de Serge July e da história do Libération, sacralizada no estatuto do jornal. Nós a reivindicamos diariamente. (…) Nem Edouard de Rothschild, desde sua entrada no capital de Libération, nem Vittorio de Filippis ou Phillipe Clerget tentaram influenciar o trabalho da Redação”.

Razão de existir

Hoje o Libération ocupa o quinto lugar em circulação na França. Em 2005, vendia 137 mil exemplares diários, bem atras do Le Monde (em quarto lugar, com 321 mil exemplares diários). O número representa uma queda de 21% nas vendas do Libé desde 2001, ano em que o jornal passou por um processo de recapitalização que transformou os funcionários em acionistas majoritários do titulo. Em 2005, o Libé registrou perdas equivalentes a 15 milhões de euros. No primeiro semestre de 2006, as perdas chegaram a 6 milhões de euros.

Segundo o editorial, a parte da “culpa” pela má situação do histórico jornal é do contexto econômico que afeta os jornais no mundo inteiro. Diz o Libé:

“Os números estão aí: em 1946, existiam 28 jornais diários na França, que vendiam mais de 6 milhões de exemplares por dia em todo o pais. Hoje, restam 11 (7 deles de informação geral), que vendem 2 milhões de exemplares. Uma perda significativa para o funcionamento da democracia e a expressão do pluralismo”.

Entretanto, “seria um argumento cego tentar justificar todos os problemas do Libération com as dificuldades gerais da imprensa diária nacional”. A redação do Libération compreende que a crise que o jornal enfrenta também é uma “crise de oferta”:

“A vocação original de Libération era mostrar e contar aquilo que os outros jornais não mostravam, utilizando outras palavras, abordando outros assuntos. Agora, essa ambição não é mais suficiente. Com o tempo, outros meios compreenderam que o jornalismo deveria sair do comum”.

Como solução, o cotidiano propõe mais investimentos, necessários para “fazer um jornal melhor”. Reconhecedora dos “imperativos financeiros que pesam” sobre o jornal, a SCPL e os redatores, que assinam o editorial, se propõem a assumir parte da gerência desses problemas financeiros.

“Não estamos propondo investimentos desmesurados. Mas não podemos deixar o jornal perder fôlego, permitindo uma morte lenta do titulo.”

Além do pedido aos acionistas e parceiros comerciais, o Libé também apelou aos leitores. Uma associação de leitores será criada, e seu papel “ainda será definido nas próximas semanas”. “Enquanto isso, o site liberation.fr receberá suas contribuições e facilitará o diálogo com a redação.”

“O presidente (da chefia da Redação) Vittorio de Filippis e a SCPL estão dialogando com potenciais interessados no financiamento, relançamento e refundação do seu jornal. Com vocês, o Libération viverá. Sem vocês, leitores, não há mais razão para existir, nem de aparecer diariamente.”

Cronologia da quebra

A crise de uma das maiores vozes da esquerda francesa ficou mais evidente com a saída do co-fundador e ex-chefe de Redação, Serge July, em junho deste ano, após 33 anos à frente do Libé. A principal razão do desligamento de July, um ícone do jornalismo francês, foi o seu desacordo com Edouard de Rothschild sobre a melhor maneira de dirigir o jornal.

“Deixo o Libération porque é a última coisa que posso fazer para que vivam a empresa e a equipe que, durante anos a fio, criaram e editaram um dos mais bonitos jornais cotidianos, tanto no que se refere aos textos quantos às imagens. Em certos dias, era o jornal mais belo de todos”, dizia o último texto de July para o Libération (30/6).

A importância do Libération para o jornalismo mundial começou com sua fundação, em 1973, no contexto pós-68. “O Libé era o único a defender, contra as instituições, a ‘França de baixo’”, escreveu o jornalista Gérard Courtois, do Le Monde, por ocasião da saída de July.

Em 1981, ano da eleição de François Mitterrand, o jornal passou por uma longa crise que impediu sua publicação por três meses por causa de um plano de demissões. O Libé acabou sendo publicado novamente no dia 13 de maio, três dias depois da ascensão da esquerda francesa ao poder. Este também é o ano no qual o Libé se profissionalizou e passou a vender espaço para anúncios publicitários.

Além das diversas fases de reorganização financeira (em 1993, 1996, 2001, 2005), o Libé marcou e marca pelo discurso de esquerda, engajado e convicto. Mesmo no editorial da quinta-feira (14/9), os jornalistas não deixaram de reafirmar sua independência.

“Sem a pretensão de responder às diversas questões sem respostas que nos deixam os políticos e intelectuais, acreditamos que podemos contribuir para a necessária refundação de um pensamento de esquerda.”

Foi esse pensamento o responsável pelas vendas recordes do cotidiano, em 2002, quando o candidato da direita Jean-Marie Le Pen havia vencido o primeiro turno das eleições presidenciais. A capa do Libé chocou pelo enorme “Não” que cobria a foto de Le Pen – e vendeu 700 mil exemplares naquele dia.

Sem o Libération, perde o jornalismo (pelas lições), perdem os leitores (pela qualidade), perde o mundo. A sobrevivência do jornal parece crucial para uma discussão pluralista da atual situação da sociedade francesa, imersa em crises sociais que ficaram evidentes com o “não” à Constituição Européia, as revoltas nas periferias em novembro de 2005, a retirada do Contrato do Primeiro Emprego, em março deste ano, a discussão sobre os imigrantes ilegais no país e as eleições presidenciais, em 2007.

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)