Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que faz a mídia quando não há o que fazer?

Repercute de tudo muito, de pouco, tudo. É o que vem acontecendo nas últimas semanas. Tivemos as muitas matérias sobre o Senado: número de diretorias, cotas de passagens aéreas, critérios para criação de cargos e funções. Tivemos matérias sobre a prisão da dona da Daslu, Eliana Tranchesi, por sonegação e com pena ‘módica’ de 94 anos e alguns meses. Tivemos a operação Castelo de Areia colocando a empreiteira Camargo Corrêa, a Fiesp e os mais vistosos partidos políticos no olho do furacão.


Sobre o Senado, o que extrapolou foram os tais boxes da memória, sempre repetitivos, indefectíveis, tentando lembrar o que ainda não conseguira ser esquecido – boxes redundantes, oras. Sobre Eliana Tranchesi tivemos uma reportagem de Veja que só a muito custo poderia ser chamada de reportagem, já que melhor se encaixaria em um perfil da empresária milionária e a prisão seria apenas o pano de fundo para a revista repetir pela trilionésima vez seu credo liberal – que ser rico no Brasil não pode ser visto como crime, que mesmo os ricos também sofrem, choram e tem crises de consciência.


Sobre a Castelo de Areia, a cobertura foi feita com a mesma areia, logo saiu de cena com a descoberta que ninguém se salvava e a ninguém mesmo interessaria tal investigação. Daí, o leitorado teve o mais do mesmo: a Polícia Federal foi midiática em excesso, os agentes federais carecem de controle e de se aterem ao objeto de cada operação, nada de investigar crimes correlatos porque senão fica tudo muito misturado.


Esse foi o resumo das últimas semanas? Não. Tivemos ainda a reunião em Londres dos países que compõem o G-20, onde o presidente Lula foi alcunhado entusiasticamente por ninguém menos que seu colega americano Barack Obama com a juvenil expressão: ‘Ele é o cara!’. A verdade é que a cobertura da reunião de Londres foi fraquinha, fraquinha. Havia um interesse em que as previsões se confirmassem de véspera: seria mais uma reunião daquelas em que não se decide nada de relevante salvo estipular a data para sua nova ocorrência.


Pérola da desfaçatez


Já não se fazem mais pautas como antigamente. Será que passamos a ser, como beneficiários finais das informações (leitores/telespectadores), menos exigentes? Outro dia sintonizei na revista televisiva Fantástico e me deparei com a cobertura de um concurso sobre quem era dono do pior chulé do mundo – isto mesmo, uma maratona para se julgar tipos de chulé.


Na mesma sequência observei uma cobertura pífia sobre a morte do deputado Márcio Moreira Alves, aquele jovem destemido que nos dias que antecederam a decretação do Ato Institucional nº 5, em 1968, teve o tirocínio de convocar as moças brasileiras a dispensarem os jovens soldados por estes encarnarem a opressão militar sobre a sociedade como um todo.


A ‘minutagem’ em horário nobre do programa da Globo dedicado ao chulé deu de dez ao tempo concedido pelo mesmo programa à memória do tenaz jornalista Marcito, como era chamado pelos de sua geração.


Decididamente já não podemos antever que critérios editoriais são utilizados nos dias que correm. Ah, não podemos deixar ao relento da memória a entrevista do deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que por si só é uma pérola da desfaçatez com que se busca justificar o injustificável. Pois bem, o deputado Fraga queria histrionicamente afirmar que a moça que servia como doméstica em sua residência era na verdade alguém que lhe servia como assessora parlamentar, e deu no que deu: ‘Reafirmo que esta moça trata de assuntos políticos, ou seja, de assuntos estritamente domésticos!’. E, ante o ato falhíssimo, encara a câmara desnorteado com mais esta expressão: ‘Agora complicou tudo…’


Faltam faro e apetite


Enquanto isso, vemos o interesse em se criar pautas fundadas na realização e imediata análise de pesquisas de opinião pública sobre quem estará mais cacifado para suceder o presidente Lula. Por essa, nem madame Carlota, com sua expertise em bolas de cristal, esperaria. Querer saber com antecedência superior a um ano e meio como votará o eleitor para presidente é ou não é uma forma prática de encher o noticiário com não-fatos, com não-informações, com não-notícias?


Existe um nivelamento por baixo do que seria o tal valor-notícia. Todos os casos acima esboçados demonstram à larga a barafunda em que se encontra nossa mídia. É como se as notícias houvessem mudado de eixo e este não fosse detectado nem nas editorias nem nas redações da mídia nacional.


Para não dizer que deixei de falar sobre tema da maior importância e que gerou certa expectativa na mídia do eixo Rio-São Paulo, registro o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, logo adiado, de duas questões afetas ao exercício do jornalismo no país: a obliteração da lei de imprensa produzida nos anos de arbítrio e a necessidade de diploma para profissionais do jornalismo. O que resultou desse debate jurídico, logo abortado? A questão essencial do direito de resposta às vítimas dos excessos e mesmo da má fé dos que exercitam o fazer jornalístico.


Isto posto, fico com a sensação que existiam pautas interessantes a serem tratadas, pautas de interesse da sociedade como um todo. Por exemplo, há 50 anos, a ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos da Criança… então, a quantas anda a situação da infância no Brasil? Qual o grau de eficiência de nossas políticas para combater o trabalho infantil? Quais obstáculos precisamos superar para blindar nossas crianças da exploração sexual?


Como vem sendo tratado em outros países o instituto do direito de resposta à vítima do mau jornalismo? Deveria o assunto, tão delicado quanto esse, ser relegado à legislação ordinária ou deveria merecer atenção especial, condizente em importância ao direito humano fundamental que se pretende preservar? Quais os interesses envolvidos na atual cobertura, excessivamente negativa, do nosso Poder Legislativo? Como contrabalançar pautas negativas com pautas positivas sem que uma venha a ser contaminada ideologicamente por outra? Pautas existem. E muitas. Faltam apetite e faro jornalístico para torná-las factíveis, reais.


Caso o leitor não se sinta tentado a oferecer uma resposta à pergunta-título deste artigo, ofereço-lhe logo esta outra questão: o que a mídia faz quando se recusa a cobrir o que realmente importa?

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Mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo