A edição de aniversário de O Liberal circulou no domingo (14/11), um dia antes de o jornal completar 64 anos de existência, 44 dos quais sob o comando da família Maiorana. O ‘Repórter 70’, a principal coluna do jornal, considerou a ‘tiragem’ dessa edição ‘um marco na história da imprensa brasileira’, por conter 410 páginas em 23 cadernos.
‘Menas’ verdade. Em primeiro lugar, não se trata de tiragem, que é a quantidade de exemplares impressos, mas do número de páginas. Impressiona a confusão em relação a detalhe tão primário entre profissionais da imprensa. Quanto à tiragem, há muito O Liberal não a informa aos seus leitores. O silêncio começou quando o jornal fugiu do IVC (Instituto Verificador de Circulação), por ter fraudado os números que apresentava sob juramento. A circulação real era, na melhor das hipóteses, 100% inferior ao declarado, inclusive na publicidade veiculada pela empresa.
Ao contrário do que proclamou o ‘R-70’, a edição dos 64 anos não foi ‘recorde no Norte, Nordeste e no País’. Ela não tem 410 páginas, mas 20% menos, ou 344 páginas. Mais uma vez, o jornal dos Maiorana mentiu aos seus leitores, ao computar como páginas convencionais, de formato padrão, os suplementos encartados, que têm formato tablóide (metade do tamanho das páginas convencionais).
Feita a conversão dos cinco cadernos em formato menor (‘Troppo’, ‘Mulher’, ‘C & D’, ‘Revista da TV’ e ‘Liberalzinho’), as 368 páginas arroladas pelo jornal se transformam em 332, o que seria a ‘tiragem’ correta. E como O Liberal declara 410 páginas? Porque incluiu na sua aritmética mágica as 24 páginas da ‘Revista Líder’, um encarte comercial. Como o caderno tem o formato tablóide, a conta fica em 344 páginas, incluindo as 12 páginas standard. Com a ressalva de que o procedimento correto é não computar encarte comercial, por não ser de responsabilidade editorial do jornal.
Mas ainda que a edição contivesse 410 páginas, não seria o alegado ‘recorde no Norte, Nordeste e no País’. Se os Maioranas da segunda geração se derem ao trabalho de consultar no arquivo as edições de aniversário das décadas de 1970 e 80 do próprio jornal, verificarão que, sob o comando do pai, O Liberal já circulou mais maçudo do que neste ano. E sem alquimias bobas, como tomar por página inteira o que é meia página e dar como seu o que é encarte de terceiros.
Sem críticas
Em que fonte os Maioranas se basearam para dizer que a edição dos 64 anos bateu recorde nacional? Com tal declaração passaram para o perigoso terreno da galhofa. Nas décadas de 1960 e 70, O Estado de S.Paulo ia às ruas com mais de 300 páginas só de classificados. Ficou famosa a aparição na televisão, em 1961, do então presidente Jânio Quadros. Ele exibiu uma enorme edição dominical do Estadão para justificar a instrução 204 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), que acabou com o subsídio estatal à importação de papel de imprensa (e ao enriquecimento da plutocracia paulista, dizia o homem da vassoura, com a qual limparia a corrupção nacional, mas que utilizou para fugir depois da sua desastrada tentativa de golpe branco).
O grupo Liberal perdeu por completo os parâmetros da realidade e da responsabilidade editorial. Diz o que quer, como se sua vontade tivesse o condão de fazer a história à revelia dos fatos, da verdade. A capa do jornal continua a circular com a numeração falsa, que os Maioranas, alertados diversas vezes, se recusam a corrigir, embora a fraude seja grotesca. Como podem querer ter credibilidade se não se inibem em falsear quando a mentira serve aos seus propósitos? Perderam até o senso das medidas.
Um leitor menos desavisado que confrontasse a ‘recordista’ edição de O Liberal dos 64 anos com a edição normal do Diário do Pará do mesmo domingo verificaria que, aceita a contagem inflacionada dos dois jornais, o dos Barbalhos teria 224 páginas, mais da metade da volumetria aniversariante do concorrente (numa contagem exata, apenas 166 páginas, já que o Diário possui mais encartes do que O Liberal).
Para corrigir o tom operístico da imprensa local, sugiro aos estudantes dos cursos de comunicação social um levantamento rigoroso sobre as edições comemorativas de aniversário dos dois maiores jornais locais. A pesquisa devia começar em 1983, quando começou a disputa,. O resultado devia ser enviado para a redação de O Liberal. Pelo menos para checar o que diz o editorial comemorativo, garantindo que o jornal ‘escolheu fazer da informação a matéria prima essencial e insubstituível para fazer do jornalismo a voz que não apenas registra os fatos, mas os interpreta’.
Se publicar a íntegra da pesquisa, O Liberal estimulará os futuros jornalistas a fazer outra investigação para tentar encontrar, na seção de cartas dos leitores, ao menos uma com críticas ao jornal. Se tiverem sucesso na busca, aí, sim, será caso de recorde verdadeiro.
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Jornal dos Maioranas de novo condenado
Sobre uma foto de três rapazes dentro de um ônibus, O Liberal abriu manchete numa edição do seu sanguinolento caderno de polícia, em 2005: ‘Flagrante: três jovens assaltantes são presos após assalto em ônibus’. O problema é que os jovens não estavam presentes àquele assalto: eles tinham sido fotografados pelo jornal alguns dias antes para alguma reportagem sobre o precário transporte coletivo de Belém. Na confusão, pessoas inocentes foram transformadas em bandidos.
No dia 8/11, a 1ª Câmara Cível Isolada do Tribunal de Justiça do Estado confirmou a condenação imposta em primeiro grau ao jornal, para o pagamento de 20 mil reais como indenização pelo dano moral causado a Alexandre dos Santos Reis, uma das vítimas do erro de informação, além de ter que pagar honorários de 20% sobre o valor da causa e as custas processuais. O autor solicitara 500 salários mínimos (ou 225 mil reais). Na sua apelação, o jornal pediu que, caso seu recurso venha a ser rejeitado, pelo menos o valor da indenização (10% do requerido) seja reduzido.
Os desembargadores também intimaram Delta Publicidade, empresa responsável pelo jornal da família Maiorana, a ‘publicar retratação cabal dos fatos noticiados e com publicação de fotografia do autor, em seu jornal diário, com o mesmo tipo, tamanho e com igual destaque, no mesmo caderno da notícia questionada’. Se não cumprir a ordem, estará sujeita a multa diária de 500 reais, em benefício do autor, até o limite de R$ 10 mil.
Ética violada
A empresa se defendeu alegando que a publicação trocada da foto foi um equívoco, cometido sem má fé, não caracterizando dolo ou ato ilícito. O efeito teria sido apenas ‘um leve aborrecimento gerando no máximo dissabores ou mal-estar’ ao autor da ação. Nesse caso, não lhe asseguraria ‘o direito de postular a reparação por danos morais, sob o argumento de que o fato deu causa a sua demissão’. Lembrou que retificou o erro (embora de forma tão discreta que poucos a devem ter percebido). Além da inexistência do dano moral apontado, a sentença teria exorbitado o pedido inicial quando impôs multa diária à empresa dos Maioranas, defenderam-se eles.
No seu voto, o desembargador Leonardo Tavares de Noronha disse que O Liberal, ‘ao divulgar a notícia, sem a devida cautela ou qualquer averiguação, assumiu o risco correspondente quando estampou no citado jornal a fotografia do autor’ imputando-lhe falsamente a autoria de um crime. O relator considerou ‘indiscutível’ que o jornal causou prejuízo moral ao autor, quando divulgou sua fotografia ‘acompanhando fato falso ao conhecimento do grande público, imputando-lhe a prática de um delito que este não cometeu’.
Argumentou: ‘Muito embora os jornalistas e as empresas de comunicação assim não entendam, a honra, a privacidade e outros atributos da personalidade do indivíduo, são direitos eminentemente individuais, personalíssimos, um direito subjetivo inalienável, entendo, não cede ante o direito de informar, um direito público, coletivo. O exercício regular de um direito, in casu, o de informar, passa a ser irregular, e, por isso, ilícito, quando não veraz, quando causador de danos a terceiros’, como aconteceu com O Liberal.
A juíza Teresinha Nunes Moura concluiu seu julgamento na instância inferior reconhecendo que o jornal ‘foi negligente ao deixar de confirmar, antes da publicação, que os indivíduos retratados realmente seriam os criminosos responsáveis pelo crime noticiado, fato de gravíssima responsabilidade, face à grande penetração no meio social que o veículo de imprensa réu, possui no Estado do Pará’.
Assim, teria violado ‘os mais elementares princípios da responsabilidade ética a reportagem que identifica como criminosa pessoa totalmente alheia ao delito, situação agravada ainda mais pelo fato de ter o requerido [O Liberal] tirado proveito econômico da utilização da imagem, sem o consentimento do autor, incorrendo o réu, portanto, na mácula de locupletamento ilícito à custa do prejuízo alheio’. Por causa da notícia, quatro meses depois Alexandre foi demitido da empresa onde trabalhava.
Ilicitude notória
Quanto ao dano moral alegado pelo autor da ação, sentenciou a juíza, ‘é inegável que o fato de ter sua foto publicada em reportagem policial, com a identificação de assaltante de ônibus, causa em qualquer pessoa intensa, frustração, revolta e sentimento de impotência, abalos psicológicos de monta que configuram, inescapavelmente, verdadeiro dano morai indenizável. Há de se perguntar: Afinal, quem de nós gostaria de ser tachado de criminoso?’
– O fato de que o jornal extrapolou os limites do permitido. São frequentes os episódios nos quais as empresas jornalísticas, no afã de se anteciparem a concorrência ou de publicarem notícias que garantam a venda, levam ao conhecimento público fatos que, posteriormente, são tidos como inverídicos – assinalou ainda a magistrada.
Para O Liberal, que nunca gosta de admitir seus constantes erros (nem todos de boa fé ou produto de ‘equívocos’), quando os prejudicados são os outros, não há dano. Ou se há, deve ser esquecido, debitado na larga conta da tolerância. Já quando se sente ofendido, com ou sem razão, de boa ou de má fé, o jornal considera o fato crime de lesa-majestade e clama por punição exemplar, rigorosa e implacável. Ai da justiça se não se curvar aos seus caprichos e suscetibilidades.
Mesmo num caso de ilicitude evidente, pública e notória, na qual é réu confesso, porque publicou uma nota admitindo o erro da fotografia, o jornal ainda quer desconto da pena que deve pagar para reparar o dano causado, embora a taxação pela justiça seja inferior a 10% do que pediu a vítima. A reiterada prática arrogante e insensível de O Liberal talvez, quem sabe, esteja fazendo a justiça paraense perquirir por seus brios e defender os injustiçados pelo poderoso jornal – que não são poucos.
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Picaretagem social
A legenda da foto na coluna social tinha apenas quatro linhas. O espaço só deu para dar o nome da jovem que fazia 15 anos e dos seus pais, em pouco mais de uma linha. As outras três linhas e meia de texto traziam o nome do restaurante onde foi realizada a recepção, do decorador, da modista, do cerimonial e do fotógrafo. A picaretagem nas colunas sociais de Belém, com singular exceção, se tornou explícita e total. No meio de quem realmente é notícia, uma legião de anônimos tornados VIPs graças a milhares de argumentos sonantes.
Para piorar a situação, as colunas sociais se multiplicam como amebas na imprensa local. Viraram epidemia.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)