Em entrevista concedida ao jornalista Mozahir Salomão e publicada neste Observatório da Imprensa [ver ‘Jornalistas não ligam para a teoria‘], Nélson Traquina, professor de jornalismo do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova, de Lisboa, afirmou que ‘as pessoas que fazem as notícias lêem pouco sobre o jornalismo’. Ou seja, para o teórico e autor de vários livros sobre o tema, o jornalista não tem exercitado as teorias da comunicação e do próprio jornalismo.
Quem já trabalhou em qualquer tipo de mídia (jornal, rádio, TV), conhece a tal da rotina produtiva dentro de uma redação de notícias. O relógio é o senhor absoluto no processo de transformar um acontecimento em um fato minimamente publicável. O profissional trabalha contra o tempo no primado das notícias sempre frescas. No caso do impresso, agravando o problema, em ambientes de trabalho com recursos humanos cada vez mais reduzidos.
Não é raro o caso onde um ou dois jornalistas têm que dar conta e cabo de uma, duas, às vezes três páginas diárias de um jornal. Difícil pensar além do muito que já há para ser feito. O jornal precisa ser ‘fechado’, rodado ou filmado, editado e chegar às casas das pessoas todos os dias, de preferência sem atraso e na hora certa. Sob esta lógica, é impossível não prejudicar o processo de apuração e checagem da informação, alma da credibilidade jornalística.
A regra é rapidez
No meio digital não tem sido diferente. O jornalista Fábio Henrique Pereira apresentou em 2004, no V Congresso Ibero-americano de Jornalismo na Internet, uma análise do processo de construção da notícia e do perfil do jornalista neste meio. Sua descrição dessa rotina produtiva não poderia ser mais angustiante. O pesquisador encontrou um profissional que praticamente reproduz e repassa a informação recebida de outros meios sem muito tempo ou possibilidade de apuração própria e checagem das fontes. O critério de noticiabilidade, o valor da notícia, é muito mais em função da velocidade informativa do que da qualidade daquilo que vai ser publicado.
Com o ‘fetiche da velocidade’ em ação, quanto mais rápido na capacidade de veicular notícias, tanto melhor e mais funcional é o profissional. Com a possibilidade de publicação em ‘tempo real’, minuto a minuto, Pereira ressalta que se, até então, nos demais veículos, primeiro fabricava-se a notícia para só então publicá-la, a regra agora é veiculá-la para somente depois fabricá-la. Ou seja, uma notícia em processo de construção, sem as devidas apuração e checagem, já é uma notícia. O objetivo é ‘colocar no ar’ e o fluxo informativo deve ser ininterrupto e constante.
O que é uma das possibilidades do meio digital – a capacidade de publicação em qualquer momento e de qualquer lugar – transformou-se em uma de suas características fundamentais. A regra – com algumas exceções – é a rapidez, em detrimento da qualidade informativa. Porém, a apuração jornalística demanda acuidade e isso toma tempo.
É fácil fabricar mentiras
E assim o meio virtual vai se consagrando como uma espécie de vitrine da informação, com notícias pipocando à nossa frente. Pereira denomina este processo de ‘conta-gotas’ noticioso. Se a fragmentação dos fatos é da própria natureza do jornalismo, na internet ela foi elevada ao estado da arte e pode adquirir dimensões assustadoras. E enquanto isso, o webjornalista, engessado pelo seu cotidiano de trabalho até a alma, reproduz o velho modelo do gatekeeper (filtro) da imprensa tradicional, hierarquizando a informação coletada, e já pré-hierarquizada, de outros meios que não o próprio.
Um dos resultados mais evidentes deste processo é a homogeneização do conteúdo midiático. O que é publicado em um determinado veículo, certamente estará presente nos demais, com o mesmo peso, o mesmo enfoque, abordagem e valor. Um outro efeito cascata e colateral perigosíssimo é a possibilidade concreta de que de mentiras levianas se transformem em verdades; boatos sobre fatos que se espalharão na rede e contagiarão outros tantos veículos. No jornalismo, seja qual for o meio, a checagem dos dados é imprescindível. O exercício e o tempo para a devida apuração devem ser sagrados e acima de todas as coisas.
O webjornalismo pode ser mais e algumas vezes o é. O ciberespaço abre outras possibilidades que não são, entretanto, exploradas, devido ao raio da tal da rotina produtiva instituída nas redações dos meios virtuais. Uma delas é o alcance da checagem da informação que esse meio permite. Se, por um lado, é mais fácil fabricar mentiras nos meios on line, é, por outro, infinitamente mais rápido desmascará-las.
‘Cartógrafo da informação’
Qualquer usuário, detentor da informação, pode fazê-lo de maneira rápida, eficiente e precisa, já que o acesso midiático é democratizado no ciberespaço, o que não acontece no impresso e tampouco nas televisões. Somente para ilustrar, cito os exemplos de dois casos polêmicos: Jayson Blair e Ryan Jordan. Blair era colunista semanal do respeitável jornal norte-americano New York Times e plagiava notícias com freqüência maior do que o desejado e aconselhado para um jornalista que exerce eticamente seu ofício. Pois demorou um tempo considerável para que sua fraude fosse descoberta.
Um dos fatores que contribuiu para isso foi, paradoxalmente, a própria credibilidade do veículo para o qual ele trabalhava. Já Jordan criou um nick falso – um personagem – e postava informações na enciclopédia virtual Wikipedia como se fosse um especialista em algumas áreas, o que, definitivamente, não era. A farsa do segundo durou muito pouco tempo em comparação à do primeiro. A capacidade de desmascarar mentiras na internet é muito mais eficiente do que em outras mídias pelo singelo fato de que nela a informação vem de todos os lugares, e não mais de um único foco produtor da informação.
Uma outra possibilidade do mundo digital é o espaço para a publicação. Se no impresso há um certo número de páginas, editorias específicas e quantidade limitada de caracteres, no meio digital, o espaço não é problema, além de contar com estrutura de leitura que é hipermidiática. Ou seja, é possível e desejável que saídas sejam indicadas, que links sejam apontados, outras páginas, outras visões de mundo que não a sua própria ou as oficiosas.
É possível, por meio do hipertexto, expandir a informação. E mais: o crédito da fonte pode ser indicado, dando ao leitor a possibilidade de mensurar a carga ideológica da origem da informação e checar, ele mesmo, sua pertinência e validade. É possível montar uma estrutura de leitura onde o jornalista seja mais do que um mero empacotador de pílulas informativas, e sim um verdadeiro ‘cartógrafo da informação’, sugerindo caminhos, direções a serem percorridas e possibilidades de leituras variadas.
O meio tem relevância
Este profissional deve pensar para a internet, e não somente na internet. Conseqüentemente, pode institucionalizar um processo de apuração possível e diferenciado que este meio permite. A redação dos veículos on line deve ter sua própria linguagem e perspectiva.
Atualmente, um veículo impresso ou televisivo conta com uma credibilidade muito maior do que os aqueles do webjornalismo. Pois para conquistá-la, a checagem da informação que chega e que sai deve ser duplicada no meio virtual. Contraditoriamente, é o oposto que vem ocorrendo. Exemplos de como o exercício de pensar para internet pode dar certo é este próprio sítio para o qual escrevo. Um veículo que pensa e reflete a mídia, conta com colaboradores de todos os lugares e que trabalha sob as condições possibilitadas pelo meio.
Outras publicações de webjornalismo são dignas de menção. Incluo, com menção honrosa, o site NoMínimo organizado por Pedro Dória & ótima companhia, que conta com excelentes e variados artigos, críticas, fotoensaios, reportagens que usam e abusam das ferramentas disponibilizadas pela internet, incluindo, é claro, a colaboração, inestimável, do usuário e dos blogs.
Nélson Traquina afirmou que as pessoas que fazem as notícias ‘estão pouco interessadas no estudo do jornalismo’. É verdade. Mas é também verdade que o jornalista, muitas vezes, está preso dentro de uma determinada e imperiosa rotina produtiva do veículo para o qual trabalha. Não é incorreto afirmar, tampouco, que as mudanças deveriam partir das linhas editoriais desses veículos que, por sua vez, também se vêem aprisionados pelo velho relógio – analógico ou digital – que governa o exercício do jornalismo.
A prática de enquadrar o mundo e de contar histórias deve sempre ser pensada. O jornalismo não está pronto, mas em processo constante de construção. Pode ser para melhor ou para pior. Este artigo, por exemplo, é fruto de uma série de discussões e reflexões que foram estimuladas pelo professor de jornalismo digital Jorge Rocha Neto, da Universidade Fumec, que pode ser conhecido, lido e encontrado através de seu próprio blog blasfemo.
Coisas que só se encontra na maluca da internet. O meio pode não ser completamente a mensagem, mas tem lá sua relevância.
******
Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG