Conhecido no Brasil pelo furo mundial do início da guerra do Iraque, dado pela RTP (Rádio e Televisão Portuguesa), e também pela autoria do livro A guerra ao vivo (Editora Verbo, São Paulo, 2003, 296 pp.), o jornalista português Carlos Fino, de 56 anos, fez muito mais do que escrever livros ou estar no ar ao vivo, pela TV, na hora certa e no lugar certo. Advogado nascido em Lisboa, ex-militante comunista, começou sua carreira jornalística em 1976, quando conseguiu o cargo de correspondente em Moscou pela então Emissora Nacional, atual RTP. Ele conhecia bem sua base de trabalho pois curtira o exílio naquela cidade até a queda da ditadura de Antônio de Oliveira Salazar, em Portugal.
Trabalhou em Moscou até 1982, retornou no final da década para cobrir a débâcle da União Soviética, acompanhou o colapso do ‘socialismo real’ no Leste europeu e dali, sempre pela RTP, foi ser correspondente em Bruxelas (1995-1998) e Washington (1998-2000). Entre 2000 e 2002 ocupou o cargo de subdiretor de informação da emissora, pela qual cobriu a Guerra do Golfo, os conflitos na Palestina e as guerras do Afeganistão e do Iraque. Em janeiro de 2004 assumiu a função de âncora do principal telejornal da RTP, mas em agosto deixou a emissora por ter aceitado o convite para ser conselheiro de imprensa da embaixada de Portugal no Brasil.
Agora vivendo em Brasília, mesmo depois de abandonar funções estritamente jornalísticas o autor de A guerra ao vivo vai além dos limites do exercício diário do jornalismo, mantendo reflexão ativa a respeito dos caminhos da profissão e de seus problemas. Ao aceitar o novo cargo, deixou de exercer a profissão e entregou sua carteira de jornalista ao sindicato – pois, em Portugal, uma coisa não se mistura com a outra: jornalista é jornalista, assessor é assessor.
Nesta entrevista ao Observatório, Carlos Fino fala sobre a sua decisão de abandonar a carreira, das tendências à ‘tabloidização’ e espetacularização da notícia e da guerra de mercado que assombram o jornalismo atual.
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Você viveu intensamente a profissão, certa vez disse ter ‘alma jornalista’. Como foi entregar a carteira de jornalista – que no seu caso pode ser considerada como uma carteira de identidade – para se dedicar a um trabalho de gabinete com tantas obrigações protocolares?
Carlos Fino – Mais do que a entrega formal da carta, o momento que registro como o verdadeiro ‘adeus às armas’, foi a minha despedida ao vivo no final do Jornal 2 da RTP, de que era âncora principal. Quando anunciei – ‘interrompo aqui uma carreira de quase trinta anos como jornalista para iniciar outras funções ao serviço do Estado português…’ – senti um nó na garganta, afastei os olhos da câmara e… engoli em seco. Nunca pensei que esse momento pudesse acontecer assim e certamente nunca havia considerado que ocorresse tão cedo. Mas é claro que o processo teve início antes, quando comecei a admitir a hipótese e gradualmente fui aceitando a mudança. A opção não foi fácil, durou tempo e passou por sopesar ponderadamente o que podia perder e o que podia ganhar com a troca. Percorrido todo o caminho, desde repórter de rua a correspondente nas grandes capitais do mundo – Moscou, Bruxelas, Washington –, passando por comentador de política internacional, enviado especial, apresentador de telejornais e ainda uma passagem de dois anos pela direção de informação da RTP, eu tinha que saber quais as perspectivas profissionais que se me colocavam. E face ao que estava à minha frente, acabei por concluir que uma experiência do outro lado do espelho, em particular num país tão fascinante como o Brasil, era certamente algo que valia a pena.
O trabalho que vou ter neste cargo, embora inclua muitas obrigações protocolares, não é certamente só um trabalho de gabinete. Há todo um mundo de coisas a fazer – quer no relacionamento com as comunidades portuguesas e os meios de negócios, como no que respeita a contatos com a mídia, os diplomatas e a elite política brasileira. Uma atividade tão diversificada será certamente enriquecedora do ponto de vista da minha bagagem de conhecimentos e experiência profissional. É com essa esperança que venho, confiante em que não vou perder – apesar da diferença de estatuto e da ausência de carteira – a minha alma jornalista.
Entregar a carteira de jornalista ao mudar de profissão, muito mais que um ato legal de praxe, carrega uma grande simbologia. Diferente do Brasil, em Portugal não é comum a pratica simultânea do jornalismo e da assessoria de imprensa. Como você diferencia a pratica dessas profissões que aos olhos de muitos são tão próximas e parecidas?
C.F. – Sempre defendi que as duas profissões deviam estar rigorosamente separadas. Em Portugal há o bom hábito de evitar a prática simultânea do jornalismo e da assessoria. Mas a verdade é que não havendo separação de carreiras, na prática o que acontece é que muitas vezes o jornalismo funciona como um ‘estágio’ de acesso à assessoria. Tenho colegas de profissão que devem ter passado mais anos como assessores do que na prática efetiva do jornalismo. Por outro lado, muitas vezes a assessoria, longe de constituir um anátema, acaba por funcionar – perante o silêncio geral, incluindo sindicatos e observadores – como um título de legitimação para o exercício de funções de chefia, direção ou controle quando esses jornalistas regressam às redações. Por que será que ninguém vê?
Por tudo isto, continuo a defender que o ideal seria separar ainda mais as duas profissões, se possível logo a partir da universidade, com carreiras distintas e em princípio não permutáveis. É verdade que há muito de semelhante nas duas, mas algo de essencial as separa – o jornalismo busca a verdade, a assessoria defende a verdade de Estado.
Em seu livro, você faz uma reflexão a respeito da profissão do jornalista e comenta as dificuldades de se transmitir informação quando o mercado do jornalismo está voltado para o espetáculo. Esta situação influenciou a sua decisão de deixar a profissão? Qual o principal fator que hoje tem dificultado o trabalho do jornalista?
C.F. – A crescente tabloidização é um problema real, e um enorme desafio para quem defende outro tipo de jornalismo, mais na tradição do Iluminismo e da cidadania. Claro que esse tipo de reflexão também entrou na ponderação que tive de fazer. Mas não foi decisivo. Apesar de todos os excessos e todas as derivas, há uma base de racionalidade e ponderação que permanece e as vias não estão completamente fechadas. Ainda sobra algum espaço, embora a redução do jornalismo de investigação seja igualmente preocupante. Todos os poderes convivem mal com o jornalismo independente e não espanta que o queiram afastar ou liquidar, seja pelas formas mais brutais ou pelas vias mais discretas e sutis. Parece-me ser esta a grande questão e o grande combate, que, aliás, é de sempre, entre opressão e liberdade.
Você já comentou sobre a dependência dos jornalistas em relação às estruturas, às empresas e aos poderes. De que forma essa dependência influenciou o seu trabalho de jornalista, considerando o fato de que vivemos um momento em que é comum a prática da chamada ‘guerra de informação’?
C.F. – Cada vez considero mais que a proclamada liberdade e independência dos jornalistas, nas sociedades democráticas, deveria traduzir-se, para ser autêntica e credível, num estatuto para os profissionais da informação semelhante ao dos juízes. Não que só eles tivessem direito a expressar-se, o que seria absurdo. Mas a eles deveria ser conferida, pela importância crucial do próprio objetivo da profissão – indagar a verdade – uma dignidade e meios de afirmação idênticos aos dos magistrados, colocando-os assim ao abrigo das pressões que de uma forma ou de outra sempre se exercem. Isto implicaria cursos de formação universitários mais cuidados, conferindo um relevo maior à ética profissional e, last but not the least, carreiras profissionais consistentes, com progressões baseadas em concursos e critérios objetivos de avaliação de desempenho. Sem isso, só alguns jornalistas que por força das circunstâncias se destacam e adquirem estatuto estão em condições de exercer a profissão de uma forma verdadeiramente livre, capaz de fazer frente às pressões.
A popularização das tecnologias está dividindo opiniões a respeito do serviço ou desserviço que podem dar à sociedade. Qual o impacto que a ‘insegurança informativa’ causa na credibilidade da profissão e como esta insegurança compromete o trabalho do jornalista?
C.F. – A informação em tempo real, possível graças às novas tecnologias, está mudando – mudou já – a forma como a profissão se exercia até agora. Cada vez há menos tempo para reflexão, menos espaço para distanciamento crítico. Tudo acontece já, na hora, e a tudo há que responder cada vez mais rápido. Isso veio aumentar ainda mais a responsabilidade dos jornalistas, que têm a obrigação de se documentar a fundo sobre os temas que estão a tratar, sob pena da sua credibilidade ser afetada. Quando o que importa é mostrar que se está no local e falar não importa o quê, a seriedade não pode deixar de ser posta em causa. Entretanto, a velocidade com que se transmite informação afetou o modo como a profissão se exerce, mas não eliminou – ao contrário do que alguns chegam a afirmar – o papel do repórter no local. A sua presença continua a ser insubstituível, para nos dar conta do sentir e das reações profundas de quem vive as coisas; dos aspectos, muitas vezes sutis, de que depende a evolução dos acontecimentos.
A instantaneidade da informação não eliminou, por outro lado, as tentativas dos diferentes poderes de silenciar os jornalistas, muitas vezes da forma mais expedita, que é a sua eliminação física. É a isso que assistimos hoje, por exemplo, no Médio Oriente, na Chechênia e no Iraque, para só falar dos casos mais conhecidos. A generalização dos meios de reprodução e de transmissão de dados condenam essas tentativas ao fracasso e são duplamente perigosas – ao eliminarem os veículos credenciados de difusão, podem instaurar uma espécie de anarquia informativa ainda mais perigosa para quem manda.
É verdade que a sua vinda para a Embaixada da Portugal no Brasil tem o objetivo de incluir Portugal na mídia brasileira? Qual o tipo de trabalho que você pretende desenvolver, especialmente na área da comunicação?
C.F. – Colocar mais Portugal na mídia brasileira, e reflexamente o Brasil na mídia portuguesa, seria certamente desejável para dois países que se expressam na mesma língua e que têm, portanto, pelo menos o objetivo comum de lutar por ela. Mas vejo o meu trabalho de uma forma mais ampla: contribuir para que o fluxo de informação, contatos e conhecimento mútuo entre as nossas duas nações se eleve ao nível que já adquiriram as relações econômicas e humanas entre elas. Não consigo entender, por exemplo, por que ainda não há cooperação direta entre rádios e televisões dos dois países…
Existe um grande distanciamento das comunicações entre os países de língua portuguesa. Agora mesmo, a NET (rede de televisão a cabo brasileira) trocou a RTP pela SIC, quando o ideal seria buscar um acordo que permitisse a oferta dos dois canais. O que se pode fazer para encurtar essas distâncias?
C.F. – A saída da RTPi da NET é um acidente que deveria ser corrigido. Muitos milhares de portugueses e luso-descendentes, mas também muitos brasileiros, foram afetados e têm expressado vivamente o seu desagrado. Isso surge, aliás, na contra-corrente de um movimento de afirmação da RTPi no Brasil, em particular desde a cobertura da guerra no Iraque. Espero sinceramente que seja possível reverter a situação, garantindo aos telespectadores um leque tão amplo quanto possível de opções.
Como você define o seu relacionamento com o Brasil e os brasileiros? Quais suas impressões a respeito deste país?
C.F. – O Brasil me fascina. A cordialidade sincera das suas gentes é um lenitivo para a alma. Por outro lado, a dimensão continental e a diversidade das suas paisagens e costumes constituem um atrativo permanente, um espaço onde apetece perder-nos – encontrar-nos. Conviver em Brasília com o legado de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa é um privilégio. Assistir ao vivo à criatividade da língua, ao ritmo sambado do espírito brasileiro, onde permanece imortal a crença num mundo humanamente melhor, a par de um carinho muito português, como ensinou Manuel Bandeira, têm para mim um encanto permanente. Aquele mastro da bandeira ali na Praça dos Três Poderes – já repararam? – tem a forma de uma palmeira. E há no conjunto uma grandeza serena que conforta. Como não se sentir bem e não estar disponível para dar o melhor nesta tarefa nobre, que tive a sorte de me proporem, de contribuir para um maior diálogo entre duas pátrias que a língua une?