Se o objetivo de uma entrevista é assegurar o direito do público a ser informado, fica difícil definir qual a natureza do exercício praticado pelo repórter Heraldo Pereira ao entrevistar o deputado Luiz Sérgio (PT-RJ), indicado pela liderança do partido para relatar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos cartões corporativos.
O que se assistiu na edição de quinta-feira (28/2) do Jornal da Globo guarda alguma semelhança com prática jornalística ou obedece a construções simbólicas que têm por objetivo caracterizar parlamentares governistas – em especial os do Partido dos Trabalhadores – como delinqüentes contumazes? Como pessoas sob permanente suspeita, que devem ser inquiridas com técnicas policiais de interrogatório?
O que procurava Heraldo Pereira? Um contato informal, sem prejulgamentos, visando à obtenção de informações relevantes, ou estabelecer ligações com o ‘suspeito’, valendo-se de uma conversa aparentemente descontraída que não oculta uma atmosfera carregada de intimidação?
A trama começa com William Waack, no estúdio, perguntando ao repórter qual teria sido o cálculo político que levou o governo a aceitar que a presidência da CPI fosse ocupada por um parlamentar do PSDB. Pereira, em Brasília, desfia uma série de motivos mostrando um ‘governo acuado’, sem alternativas, e em seguida é apresentada a entrevista com o deputado petista.
Os motivos do ‘suspeito’
O tom jocoso reforça a suspeição prévia. O que se pretende é consolidar a premissa da cobertura. Há um parlamentar que, pela própria filiação partidária, não inspira confiança. A postura é inquisitorial como veremos a seguir.
A primeira pergunta não deixa dúvidas quanto a motivações: ‘Acordo do PT e PSDB. Vai ter acordo na CPI também?’ Estamos diante de um questionamento jornalístico ou de uma provocação política? A desqualificação prévia do entrevistado revela argúcia do entrevistador? Uma afirmação do professor Nilson Lage se encaixa como luva nesse caso:
‘O comportamento de alguns repórteres de vídeo deixa dúvidas sobre quem deve ser a `estrela´ da entrevista. Todos sabem que a `estrela´ deve ser sempre o entrevistado, por mais conhecido e vaidoso que seja o repórter’.
As demais perguntas seguiram a mesma toada: ‘A investigação vai ser mesmo pra valer ou muita coisa vai ser colocada debaixo do pano por causa do acordo político?’ Registre-se que o entrevistado já havia declarado inexistir qualquer tipo de acordo. Trata-se, portanto, de deixar evidente que o suspeito tem motivos para cometer o crime.
Fervor na fé mercantil
Quando Luiz Sérgio afirma que ‘não está na CPI para ser advogado de ninguém’, Heraldo indaga: ‘Nem do governo?’ Estamos diante de um profissional que não quer respostas e muito menos aceita objeções. O fundamental é extrair do entrevistado algo que pareça confissão de culpa. O repórter vive seu momento de inquisidor e se diverte com o papel.
O ‘Tribunal do Santo Ofício’ global se revelará por completo nas duas últimas interpelações feitas ao deputado.
‘O senhor vai proteger alguém como relator?’ Diante da negativa, Heraldo Pereira arremata: ‘Esse é um compromisso que o senhor assume perante o público do Jornal da Globo?’ Eis um belo momento de auto-representação da mídia. Cabe a ela, e somente a ela, o papel de justiça em última instância. Esqueçamos a supremacia do interesse coletivo sobre o privado. O que conta é elaborado nas grandes oficinas de consenso.
Nos processos da inquisição, a denúncia era prova de culpabilidade, cabendo ao acusado a prova de sua inocência. O Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores) definia normas processuais, termos e modelos de sentença a serem utilizados. Pelo que temos presenciado – e essa entrevista está longe de ser uma prática desviante –, cabe às corporações midiáticas reescrever o direito canônico contemporâneo. Para tanto é preciso audiência e bastante fervor na fé mercantil.
Oremos por todos.
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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ