Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O sermão que os jornalistas mereceram ouvir

Cerca de um mês atrás, dirigindo-se a um grupo de repórteres numa viagem ao exterior, o presidente Lula os cobriu de desdém. ‘Vocês são mesmo uns covardes’, ofendeu, porque a corporação não tinha saído em defesa do projeto do Conselho Federal de Jornalismo. A corporação, com as costumeiras exceções, levou para casa o desaforo injusto e prepotente.

Na quinta-feira passada, a catxigoria levou para casa, do mesmo Lula, outra descompostura – esta sim, absolutamente merecida, pelo menos no caso daqueles dos 13 jornalistas de rádio aos quais terminara de dar uma entrevista ao vivo no Planalto (a segunda do gênero desde a posse) e a quem a carapuça servia sob medida.

Dessa vez, o presidente não falou em covardia. Mas a palavra – ou qualquer outra expressão aparentada, como submissão, sabujice, temor reverencial – poderia resumir perfeitamente bem o sermão de que os destinatários deviam se envergonhar, mudando de atitude ou de profissão.

Entre paternal e magisterial, Lula se demorou em reduzir os interlocutores a pó de traque. ‘Vocês não foram constrangidos por ninguém dizendo que deveriam fazer essa ou aquela pergunta. Vocês perguntaram o que quiseram e como quiseram’, começou.

Aí apanhou o saleiro: ‘Eu pensei que vocês iriam entrar em temas polêmicos. Vocês não entraram nas coisas mais polêmicas que deram briga nesses dias, mas eu estou disposto a debater qualquer tema. Para mim não tem tema proibido, não tem tema que não possa ser discutido’.

E se pôs a esfregar: ‘Espero que tirem lições dessa nossa conversa e que na outra vocês possam ser um pouco mais duros com o presidente’.

Boa educação

Não há quem, no escurinho do cinema, já não tenha experimentado aquela vontade de esconder a cara, tamanho o constrangimento provocado por algo dito ou feito por um personagem. Faz parte dos mecanismos involuntários de projeção e identificação que se põem a funcionar quando se assiste a um filme ou a uma peça, ou na leitura de um romance.

Pois não foi outra a sensação deste leitor ao ver impressas as incisões do presidente que expuseram as vértebras gelatinosas de uma parcela dos praticantes do ofício – decerto muito mais numerosos do que os tíbios ou complacentes entrevistadores de Lula.

Houve quem escrevesse que essas coisas são assim mesmo – face a face com a autoridade, numa situação formal, a alcatéia do reportariado se transforma em um manso ajuntamento de gatos sem unhas, por deslumbramento ou intimidação.

Ruim mesmo, segundo essa interpretação, não foi o que deixou de acontecer durante a entrevista, mas o que aconteceu antes (ou terá sido depois?): a entrega de presentes, como uma caninha especial de uma região, ou CDs de músicas típicas, dos entrevistadores-convidados ao presidente-entrevistado.

Idealmente, jornalistas não deveriam dar lembrancinhas a governantes (muito menos deles recebê-las, o que não foi o caso dessa vez, mas a regra é outra, como se sabe), salvo se tiverem sido convidados para os seus aniversários – o que boa coisa não é também.

Mas, se a escolha tiver de ser esta, mil vezes um entrevistador que entrega um regalo ao poderoso entrevistado e depois avança na sua jugular, sem perder a boa educação jamais, do que aquele que chega de mãos abanando e sai com uma baita chapa-branca no rabo preso (com o governo, a empresa, ou o que se queira).

Caso especial

Jornalista brasileiro gosta de se vangloriar de ser furão, driblando barreiras e esquemas de segurança para estar onde não o querem – porque ali pode estar a notícia. Mas é a tal historia: isso de nada adianta se depois de tudo, o jornalista fica acoelhado perante o dono da notícia – como os condenados ao inferno da piada, cercados o tempo todo de mulheres voluptuosas, mas desprovidos dos meios físicos de fazer qualquer coisa com elas.

A cultura das entrevistas cheias de dedos – corajosamente a favor entrevistado – não é exclusividade brasileira. Revejam-se, por exemplo, as gravações das duas ou três coletivas que o presidente Bush se limitou a dar desde que foi posto Casa Branca adentro e o espetáculo é vexaminoso. Mas isso tem a ver com a América pós-11/9.

Seja como for, nunca um presidente brasileiro – antes ou depois da ditadura militar – precisou comer o pão que jornalistas inquiridores amassaram, que costumava ser servido aos seus homólogos americanos.

Neste espaço, aliás, já se lembrou o caso de um entrevistador de TV brasileira que pediu demissão depois que o diretor de jornalismo da emissora mandou um telegrama de desculpas ao entrevistado (o então governador pernambucano Miguel Arraes) por causa de uma pergunta que lhe havia sido feita.

Resultado único

Na Europa, os entrevistadores mais temíveis, porque mais profissionais, são os alemães e os ingleses, nessa ou na outra ordem. No ano passado, quando se ficou sabendo que o cientista britânico David Kelly tinha se suicidado – depois de sofrer tremendas pressões do governo por ter sido apontado como a fonte do repórter da BBC que denunciou manipulações em documento sobre as armas de Saddam Hussein – o primeiro-ministro Tony Blair, coincidentemente, estava no Golfo Pérsico, no início de uma viagem que terminaria no Leste Europeu.

Na coletiva daquele dia, um dos jornalistas da comitiva de Blair não se intimidou em lhe perguntar se ele se sentia como se tivesse sangue nas mãos. Em situações extremas, perguntas extremas são legítimas e para fazê-las é que os perguntadores são pagos.

Blair deve ter pensado horrores do impertinente repórter, mas nunca teria motivos para chamá-lo de covarde.

Mas a covardia – ou as antes citadas variações em torno do termo – é apenas um lado da história. Freqüentemente, no Brasil, a autoridade se safa de ser posta contra a parede não porque os jornalistas que poderiam fazê-lo a temem, simpatizam com ela ou com o seu partido.

Mas porque, não tendo feito a lição de casa, tampouco dispõem de informações capazes de fundamentar perguntas embaraçosas ou réplicas que ponham em xeque respostas anteriores. Disso advém uma insegurança que confina os entrevistadores ao confortável (para os dois lados do balcão) regaço das generalidades. Não são essas que se diz serem a especialidade do jornalismo?

Existe ainda, convém registrar, aquele tipo de repórter que combina o pior dos dois mundos, fazendo perguntas agressivas, mas sem base. Este deixa a fonte exasperada, mas também com uma ponta de alívio, ao perceber que o seu risco real é mínimo, apesar do barulho de que é alvo.

Lula afirmou aos radialistas que está disposto ‘a debater qualquer tema’. Com toda a probabilidade, boa parte dessa disposição vem do fato de ele saber que o debatedor de gravador ligado não deverá pegá-lo no contrapé, ainda mais se o tema em questão for complexo (o que tendem a ser todos os que o interesse público demanda que sejam levantados).

Difícil saber, em suma, o que é pior para um jornalista: a leniência da covardia, da cumplicidade ou da ignorância. Para o desavisado consumidor de informação, o resultado é o mesmo – um logro.

[Texto fechado às 16h08 de 26/9]