Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sigilo da fonte em julgamento

A condenação de Lewis Libby Jr., chefe de gabinete do vice-presidente americano Dick Cheney, por ter vazado à imprensa o nome de uma agente da CIA [leia aqui], tornou a colocar com força total nos Estados Unidos uma questão essencial para a liberdade de imprensa em qualquer sociedade democrática.


Trata-se da amplitude (ou dos limites) do direito de um jornalista de não revelar as suas fontes de informação, quando assume com elas, em troca da notícia, o compromisso de não identificá-las.


No caso Libby, uma repórter do New York Times ficou 85 dias presa porque se recusou a depor sobre suas entrevistas com Libby ao Grande Júri do processo aberto para apurar o vazamento. Ela só foi libertada porque acedeu em falar – depois de autorizada pelo próprio sub de Cheney.


Além disso, dez das 19 testemunhas ouvidas no julgamento são jornalistas. Não há registro de algo do gênero na história do judiciário americano.


Dos dez, três tiveram papel decisivo no veredicto ao contar o que ouviram do réu ‘em off‘, depois de rejeitadas as suas tentativas de preservar o silêncio, invocando a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos.


A emenda, entre outras coisas, considera a liberdade de expressão e de imprensa o equivalente a uma cláusula pétrea constitucional. É tida como o fundamento por excelência da democracia americana.


Violência inaceitável


O procurador federal que investigou o caso Libby, Patrick J. Fitzgerald, dizem os seus críticos, começou a dobrar os jornalistas em 2005 com táticas e pressões nunca antes usadas contra profissionais da imprensa, conforme escreveu Adam Liptak no New York Times de quinta-feira (8/3) [leia aqui].


Desde então, outros procuradores tentaram extrair de dois repórteres de São Francisco o nome de quem lhes vazou sigilosamente informações sobre o uso de esteróides por jogadores de baseball. Os jornalistas se salvaram porque a fonte foi identificada por outros meios.


Um cinegrafista free-lancer, por outro lado, passou quase meio ano na cadeia por se recusar a entregar às autoridades seus vídeos de uma manifestação, também em São Francisco.


O próprio procurador Fitzgerald admitiu em entrevista na terça-feira (6/3) que ‘interrogar repórteres deve ser o último recurso em processos muito especiais’.


Nem por isso foi absolvido por todos quantos sustentam que obrigar um jornalista a testemunhar contra a sua fonte é uma violência inaceitável em regimes democráticos – e que só uma tomada de posição sem mas nem porém em defesa do sigilo jornalístico garante o livre fluxo de informações de interesse público.


Poder tremendo


Se o caso Libby for o marco inaugural da ruptura desse princípio, ironizam ainda os críticos, talvez um dia os repórteres comecem as suas entrevistas ‘em off‘ declamando para as fontes os seus direitos, como os policiais americanos são obrigados a fazer quando prendem alguém: ‘Você tem o direito de permanecer em silêncio. Tudo que disser poderá ser usado contra você…’


De todo modo, o problema talvez seja mais complexo do que parece – argumenta o ex-colunista do New York Times Anthony Lewis, no artigo ‘Nem todas as fontes são iguais‘ [no original em inglês], provavelmente a melhor reflexão sobre o assunto publicada na imprensa americana. O Estado de S.Paulo de domingo (11/3) transcreve o artigo sob o título ‘Nem toda fonte deve ser protegida‘ [só para assinantes].


Ele endossa o consenso de que ‘sem poder prometer confidencialidade, a imprensa teria sido incapaz de revelar casos notórios de abusos de poder, desde o Watergate até as violações de direitos fundamentais cometidas pelo governo Bush, em nome da guerra ao terror’. Mas, adverte, ‘é muito mais fácil enxergar o perigo do que chegar a um acordo sobre como detê-lo’.


Segundo uma decisão da Suprema Corte dos EUA, em 1964, figuras públicas só poderão pleitear indenização por danos morais que teriam sofrido por causa de artigos ou reportagens se conseguirem provar que se publicaram falsidades a seu respeito ‘com conhecimento de causa’ ou ‘temerariamente’ [suspeitando que pudesse ser mentira].


No entender de Lewis, e é difícil divergir dele, isso dá à mídia um tremendo poder. Um jornalista temerário, exemplifica, poderia escrever que, segundo uma fonte que pediu para não ser identificada, um membro do governo, este sim identificado, aceitou suborno. Se isso for mentira e se a autoridade não puder provar que ou a fonte mentiu ou o jornalista distorceu o que ouviu, não poderá ser ressarcida da calúnia.


Compromisso sagrado


Em janeiro de 2000, o físico Wen Ho Lee, que trabalhava para o governo americano, foi acusado na imprensa, por fontes anônimas, de espionar para a China. Processado pelo governo, foi preso e passou nove meses na solitária antes de ficar provado que era tudo falso. O juiz que o absolveu acusou os seus acusadores de ‘deixarem constrangida a nação inteira’.


No curso da história, o jornal Boston Globe, que pertence ao New York Times, informou que o denunciante anônimo de Lee era ‘um funcionário conhecido pelo seu direitismo extremado e comportamento racista’. Nem por isso os repórteres o entregaram.


Pergunta-se Lewis: ‘Numa situação como essa, seria direito os jornalistas terem um privilégio absoluto que os poupasse de testemunhar?’ A seu ver, ‘uma sociedade decente não poderia aceitar isso’.


Se não se deve mandar um jornalista para a cadeia por ele não querer dedar os seus informantes – pois isso seria o fim do jornalismo investigativo, revelador dos podres dos donos do poder e do dinheiro – tampouco se deve esquecer que nem todo informante age em defesa do interesse coletivo e diz a verdade, ou o que acha ser a verdade.


Infelizmente, isso não elimina o dilema. Se eu, jornalista, me comprometi com Fulano a não publicar que foi ele quem me segredou que Sicrano desvia dinheiro público, será que tenho o direito de quebrar a promessa, quando fica demonstrado que as provas do alegado desvio que me foram entregues haviam sido forjadas?


Mas, de outra parte, se eu achar que o compromisso assumido é sagrado, quaisquer que sejam os fatos posteriores, não estarei protegendo um caluniador?


E não é só isso. Que fonte se abrirá comigo amanhã, sabendo que eu entreguei outra fonte ontem?


Como dizem os americanos, ‘a solução eu não tenho, mas o problema eu admiro’.