A Manhã teve uma trajetória curta e ruidosa. Durou apenas quatro anos. Hoje, o jornal é lembrado principalmente porque seu fundador, Mário Rodrigues, foi o pai do dramaturgo Nelson Rodrigues. Mas A Manhã teve um papel importante na imprensa e na política do Rio de Janeiro da década de 1920 e abriu caminho para um jornalismo popular, de um sensacionalismo exacerbado, que até então era desconhecido e raras vezes foi igualado. Inovou na imprensa pela sua apresentação gráfica e pela qualidade de suas charges e ilustrações, que contribuíram para sua grande aceitação pelo público.
Mário Rodrigues foi um jornalista pernambucano que desenvolvera um estilo agressivo e panfletário no Jornal da República, de Recife, defendendo o governador, o general Dantas Barreto, e atacando o Diário de Pernambuco e seu dono, Francisco de Assis Rosa e Silva, um dos mais poderosos latifundiários do Nordeste.
No Rio, ele aperfeiçoara o estilo truculento e panfletário no Correio da Manhã de Edmundo Bittencourt. Primeiro como editorialista e depois como diretor do Correio, foi Mário Rodrigues o autor de alguns dos mais furiosos ataques a governos e homens públicos da história da imprensa brasileira. O principal alvo, mas longe de ser o único, era o presidente Epitácio Pessoa. “Tirano de opereta”, “réprobo”, “enfermo, dominado pelo delírio de mandar”, “tirano de maus fígados e alma enoitecida”, “Nero de Umbuzeiro” – a cidade da Paraíba onde Epitácio tinha nascido –, eram alguns dos insultos com que o jornal se referia ao presidente. Os ataques de Rodrigues, diz Ruy Castro, eram “daqueles de fazer Epitácio descer de seu perfil de efígie”.
Cabeça sem corpo
Devido à violência dos insultos e a cartas falsas atingindo Arthur Bernardes publicadas pelo jornal, Mário Rodrigues, condenado por injúria, foi preso durante um ano e o Correio da Manhã fechado por oito meses. Nesse período, seu salário foi reduzido. Se não fosse pela ajuda de Geraldo Rocha, dono de A Noite, a família teria passado fome. Ao sair da cadeia, Rodrigues foi surpreendido com a decisão de Bittencourt de fazer um rodízio com seu cargo, a direção da redação. Também ficou chocado com a aproximação do Correio da Manhã com o seu grande inimigo, Epitácio Pessoa.
Indignado, Rodrigues decidiu lançar seu próprio jornal. Tomou dinheiro emprestado de João Pallut, o “João Turco” ou “Turquinho”, um banqueiro do bicho dono do matutino A Batalha e do vespertino A Esquerda, ligado ao Partido Comunista, e associou-se a Antônio Faustino Porto, que entrou com parte do capital. Um acionista oculto foi possivelmente Geraldo Rocha, o dono de A Noite.
O primeiro número de A Manhã saiu à rua em 29 de dezembro de 1925. Rompia com a tradição de que os jornais populares tinham que ser vespertinos. Procurou reunir um grupo de colaboradores de alto nível. Escreveram nele Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Medeiros e Albuquerque, Agrippino Grieco, Maurício de Lacerda, Antônio de Alcântara Machado, Henrique Pongetti, Orestes Barbosa. Acolheu também o humorista Apparicio Torelli, que assinava a coluna como Apporelli “Amanhã tem mais…”. Isso foi antes de ele se auto-outorgar títulos nobiliários, primeiro o de duque de Itararé, para depois, modestamente, rebaixar-se a barão, e antes de lançar seu próprio jornal A Manha, uma evidente paródia do diário de Rodrigues.
Um mês depois do lançamento, Rodrigues preparou sua vingança contra Edmundo Bittencourt. Escreveu uma série de artigos arrasadores sobre ele e o Correio da Manhã com a mesma pena envenenada com que atacara Epitácio Pessoa no Correio. Dizia que Bittencourt era cínico e o seu jornal mentiroso. Impassível no começo, Bittencourt reagiu com um editorial comparando A Manhã com um “pot de chambre” (penico).
Não foi Bittencourt o único alvo da pena de Mário Rodrigues. Como disse Ruy Castro, “a virulência de A Manhã não tinha paralelo dentro das circunstâncias”. Doze vezes foi processado e em todas absolvido, o que levou Rodrigues a escrever acima da assinatura: “Se não gostarem, processem-me”. Segundo Herman Lima, autor de uma obra monumental sobre a caricatura no Brasil, “contra (o presidente Arthur) Bernardes abriam fogo, diretamente, todos os seus adversários, entre os quais ninguém atingiu a crueza e a truculência de Mário Rodrigues”, a quem qualifica de jornalista de paroxismos. Gilberto Amado dizia que Mário era um “foliculário catastrófico”.
Nelson Rodrigues conta, à sua maneira, o apelo à emoção e aos sentidos do jornal de seu pai:
“No meu primeiro mês de redação, houve um desastre de trem que assombrou a cidade. Morreram cem pessoas. Quando nós, da reportagem, chegamos, muitos ainda agonizavam; e uma moça, com as duas pernas esmagadas, pedia pelo amor de Deus: ‘Me matem, me matem’. Eu via, atônito, os vagões trepados uns nos outros. Lá estava a locomotiva entortada. Um trem cavalgando outro trem. E o pior era a promiscuidade de feridos e mortos. De vez em quando, uma mão brotava das ferragens. E um colega tropeçou numa cabeça sem corpo. (…) Houve um momento em que me encostei num poste e tranquei os lábios, em náuseas medonhas. Um colega achou graça: ‘Seja homem’.” (Rodrigues, 1977, p. 201-202).
Libelo sem palavras
Assim como acontecera com o Correio da Manhã, a agressividade sem freio foi o principal fator de êxito de A Manhã. Sua virulência atraiu um grande número de leitores. Numa edição que comoveu o Rio, o jornal publicou na primeira página a foto de um jovem casal de suicidas, enforcados numa árvore, de mãos dadas. O jornal também teve veleidades esquerdistas devido à influência de Pedro Motta Lima, subdiretor, membro do Partido Comunista, que lançou a seção “A Manhã proletária”, mas foi uma fase que só durou cinco meses.
Nelson Rodrigues conta em suas memórias que seu pai dizia horrores do governador de Pernambuco, Sérgio Loreto, até que um intermediário perguntou: “Quanto você quer?”; ele pediu uma quantia astronômica. O intermediário tomou um susto; “os outros” eram muito mais baratos e mostrou recibos. Mário Rodrigues encerrou a discussão:
“Ou isso ou nada. O negócio foi fechado. Não precisaria escrever nada a favor; apenas não ser contra. No dia seguinte, A Manhã abre, em festa, as suas manchetes, contando todo o processo do suborno; e, ainda, nos cabeçalhos garrafais, meu pai anunciava que ia di
stribuir o dinheiro, até o último tostão, entre os pobres do Rio de Janeiro.”
Mário Rodrigues prometeu repartir trinta contos, distribuindo, em três vezes, mil senhas de dez mil réis aos pobres do Rio, para pagar uma semana depois. Nelson:
“Quando meu pai surgiu, lá em cima, ergueu-se da multidão um gemido grosso, vacum. Eu estava também na sacada. E quando o dinheiro começou a ser distribuído começou um lúgubre alarido. Foi dado, como já disse, até o último tostão. Eu vi seres incríveis que, em vida, apodreciam em chagas. No fim, meu pai tirava o dinheiro do próprio bolso e dizia: ‘Dá, vai dando’.”
Cresceu ainda mais a popularidade de A Manhã.
A Manhã se destacou pelo uso ousado e inovador das ilustrações e se transformou em modelo para o resto da imprensa. Uma atração eram as ilustrações de Andrés Guevara, nascido no Paraguai, excelente desenhista e chargista. No dizer de Humberto de Campos, foi “o único paraguaio que venceu o Brasil”. Começou fazendo “portraits-charges”, uma espécie de caricaturas de pessoas ilustres, que até hoje despertam admiração, seguidas de “algumas das mais virulentas sátiras gráficas já saídas de qualquer lápis em nosso país”, segundo Herman Lima. Eram, diz ele, “realmente excepcionais, pelo vigor e originalidade do desenho, como pelo tom de agressividade pessoal ainda desconhecida até então em qualquer de nossas publicações, mesmo dos tempos do Império”.
Guevara desenhava quase diariamente para o jornal. Ilustrava as crônicas de Apporelli, os versos humorísticos de Ary Pavão e passou a fazer uma página inteira, “A Semana Humorística”. Ainda segundo Herman Lima, ele “ultrapassa verdadeiramente o inimaginável, no combate de ideias e de doutrinas, pela descaída direta no ataque pessoal”. Ele seguia a diretriz do jornal e, quase sempre, a ilustração acompanhava o editorial ou o suelto. As charges eram o equivalente gráfico dos violentos artigos de Mário Rodrigues. “Havia uma fantasia tão grande, na estilização daquelas máscaras cortadas de sulcos e semeadas de protuberâncias geométricas muita vez vizinhas à mais ousada construção cubista, que bastariam para firmar-lhe um nome universal (…) na apresentação dos figurões políticos em sátiras que acompanhavam no mesmo tom o sensacionalismo, a virulência da linguagem, os ataques do terrível órgão.”
Henrique Pongetti dizia que Guevara criou o libelo sem palavras, o desenho que fala por si, e que usava “o sal e o vitríolo, o pó de mico e o fel, o rabo de papel e a lixa grossa, a urtiga e o carrapicho – esse alquimista demoníaco da sátira desenhada deu aos cariocas a fórmula diária do riso que abre fendas nos fortins oligárquicos e ativa a vesícula biliar”.
Efeito curto
Guevara foi também um renovador do “design” dos jornais. José Mendes André escreve em Tempo, Cidade e Arquitetura: “Desde o primeiro número, o jornal A Manhã introduz expedientes e técnicas visuais inéditas em seu tempo” e afirma que “Guevara presenteou o Brasil com inesquecíveis páginas e desenhos dignos de serem emoldurados” e que “A Manhã foi um dos laboratórios de ‘design’ gráfico mais prolíficos, mais efetivos e de maior penetração social no Brasil”. Examinando os projetos do “design” gráfico latino-americano dos anos 1940 e 50, ele diz que tudo aquilo já havia sido anteriormente experimentado no A Manhã.
Outro desenhista foi o chargista Fritz, pseudônimo germânico atrás do qual se escondia o carioca Anísio Oscar Mota, que publicava todos os dias duas pequenas charges no alto da primeira página do jornal, ao lado do cabeçalho. Ele também faria ilustrações memoráveis no jornal A Noite.
Os filhos de Mário Rodrigues foram trabalhar no jornal. Milton era o secretário; Roberto, um desenhista de talento, fazia ilustrações. Mário era o gerente e Nelson era repórter e colunista.
Quando ainda estava no Correio da Manhã, Mário Rodrigues convenceu o anódino presidente do estado de Minas Gerais, Fernando de Mello Viana, de que deveria ser o próximo presidente da República e lhe ofereceu seu apoio – bem remunerado. Com a propaganda feita no Correio, que foi seguida por outros diários do Rio, Mello Viana foi vice-presidente na chapa de Washington Luís. Quando Rodrigues lançou A Manhã, Mello Viana recompensou generosamente a ajuda recebida. O novo jornal, depois de algumas críticas iniciais, apoiou o novo governo. O habitual veneno das caricaturas de Guevara foi substituído por ilustrações suaves e lisonjeiras, nas quais Washington Luís era apresentado como o alegre “político de Macaé”.
Se A Manhã passou a ser um jornal governista, não esqueceu seus antigos inimigos. Em 1º de janeiro de 1927, começou “a mais terrível campanha” contra o ex-presidente Arthur Bernardes. Nesse dia, a terrível ilustração de Guevara, de uma página inteira, tinha o interminável título de “Os Quatro anos de Bernardes no Catete: A voz do Senhor: Caim! Caim, que fizeste de teus Irmãos? Comidas de urubu” e, segundo Herman Lima, foi talvez a mais agressiva charge que Guevara fez em toda sua permanência no Brasil. Outra sátira mortífera foi “Comidas de urubu”.
Mas, apesar de todo o dinheiro recebido de diversas fontes, Rodrigues se endividou e não conseguiu manter o controle do jornal. Entrava muito e gastava muito mais. Fazia caros presentes para sua jovem amante; enterrou 50 contos numa campanha fracassada para tentar eleger-se deputado. Devia quase 300 contos ao “João Turco”, várias centenas de contos aos importadores de papel, tinha dívidas com os bancos. Um buraco superior aos três mil contos. Estava à beira da falência.
Perdeu A Manhã para seu sócio, Antônio Faustino Porto. Em outubro de 1928, menos de três anos depois do lançamento, Porto assumiu a dívida e o controle. Rodrigues aceitou a proposta de ser o diretor do jornal. No primeiro dia, quando Porto quis interferir no editorial, pediu a demissão com um bilhete:
“Estava louco V. S. se pensou que, com as ações, eu lhe transferia a minha pena, a minha inteligência, o meu nome, o meu pundonor de homem. Tem esse troco a injúria de haver querido transformar um amigo em escravo. Ninguém me vence, saiba disso, ninguém me vence, senão pelo afeto, pelo carinho, pela cordura. Vingo-me deixando-lhe A Manhã nas mãos e obrigando-o a sondar a consciência. Adeus – Mário Rodrigues.”
Mês e meio depois, Rodrigues lançava outro jornal, Crítica. A vingança de deixar o jornal nas mãos de Porto teve efeito no curto prazo. Onze meses depois, em setembro de 1929, fechava A Manhã.
Estado Novo
Anos depois, seriam lançados outros jornais com o mesmo nome. Em abril de 1935, Pedro Motta Lima, o mesmo jornalista que, como subdiretor de Mário Rodrigues, tinha orientado a antiga A Manhã para a esquerda, fundou uma nova A Manhã, para ser porta-voz da Aliança Nacional Libertadora, criada pelo Partido Comunista. A primeira página do jornal tinha uma ilustração de Di Cavalcanti. Escreveram nele Jorge Amado, Maurício de Lacerda e seu filho Carlos, Anísio Teixeira, Rubem Braga, Álvaro Moreyra, Josué de Castro, Hermes Lima, Francisco Mangabeira. Edmar Morel, repórter, disse que a redação estava formada pela elite do jornalismo de esquerda. Os salários eram baixos, mas o pagamento era certo, ao contrário do que acontecia na maioria dos jornais.
Em julho de 1935, quando A Manhã publicou o manifesto de Luís Carlos Prestes, a tiragem foi triplicada, mas a edição foi apreendida. O jornal durou apenas sete meses; fechou em novembro, durante a Intentona Comunista. Manchete do último número: “Prestes à frente da insurreição armada no Rio”. Subtítulo: “Sob seu comando levantou-se de madrugada a guarnição desta capital”. A ilustração era uma fotografia de Prestes. Nas máquinas de A Manhã seria lançada A Tarde, um tabloide moderno de 48 páginas, também de curta duração.
Outro jornal com o nome de A Manhã foi fundado em São Paulo, em 1941. Era uma publicação governamental, que defendia o Estado Novo e criticava a democracia. Seus diretores foram os escritores-interventores e também poetas Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. A Manhã de São Paulo publicou os suplementos “Autores e Livros”, editado por Múcio Leão, e “Críticas das Ideias”. Tinha colaborações de Cecília Meirelles, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Alceu de Amoroso Lima, Afonso Arinos de Mello Franco, Vinicius de Moraes. Foram inevitáveis os choques desses escritores com a orientação política do jornal. Quase todos eles saíram. A Manhã paulista fechou em 1953.
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[Matías M. Molina é jornalista e autor de Os Melhores Jornais do Mundo]