O ano passado não acabou. Não acabou nem a Idade Média. A Inquisição atua nas portas das escolas e dos cabarés punindo os que ofenderam o santo nome de Deus e da Madre Igreja Católica. Nem passamos ainda pelo nazismo. Nas telas, o filme de sucesso mostra a tortura e o assassinato, lento, detalhado, de um homem dito santo. É a civilização.
Este é o mundo da revista Veja. E quem não estiver com ela está contra ela. Só a Veja (e, claro, o Jornal Nacional da Globo) ainda não percebeu que temos no mundo um neonazista chamado George W. Bush. A Veja, com seus olhos melecosos de um jornalismo fundamentalista, vê em Bush a salvação do planeta. Devemos aceitar a hegemonia norte-americana, com sua cultura bélica, seu mando comercial, sua competência para invadir outros Estados, e a capacidade de impor suas idéias ao jornalismo subserviente. Ou aceitamos isso ou seremos iguais aos bandidos, no caso, os terroristas.
Na edição nº 1.845 (17/3/04), a Veja coloca na capa a cena trágica do ataque aos trens de Madri. Sangue e morte. A legenda ensina: ‘As vítimas somos todos nós’. Isto é, transfere para nós, brasileiros, uma guerra declarada pelos norte-americanos aos que não aceitam sua política nazista. O texto, assinado por Jaime Klintowitz, faz a autopsia do crime, apela, usa uma expressão típica dos fundamentalistas que ele condena: ‘O terrorismo é o pecado original do século XXI’. Como é que o jornalismo usa uma expressão dessas? ‘Pecado’ vem de pecatum, erro. Não caberia aqui se fosse um jornalismo, digamos, sério. Mas não é jornalismo, é pregação. No caso, pregação contra o Mal – o terrorismo é tudo aquilo que não seja ‘civilizado’. A repórter Vilma Gryzinski, na mesma edição da Veja, repele as ações dos terroristas: ‘É exatamente aí que está a semente de propagação do mal’. Mas parece uma frase retirada de um livro sagrado. Pergunto: o caso da Veja é teológico?
Na edição seguinte (nº 1.846) a Veja insiste na sua tese escatológica. Mais uma vez o terrorismo é apresentado como Mal do Século. Nas cartas à redação pede desculpas ao leitor por ter colocado uma foto de sangue na capa. Mas é que ‘a selvageria do ato exigiu’. Selvageria, explique-se, é coisa de selvagens, bárbaros, incivilizados. É preconceito contra os índios, contra nós do Terceiro Mundo.
Na edição do dia 17 a Veja comete – intencionalmente, claro – alguns esquecimentos. Por exemplo, como tudo começou? Por que e como Bin Laden se tornou terrorista? Não conta que a família Bush teve negócios com Bin Laden, e de como seu grupo foi armado pelos Estados Unidos para defender o Afeganistão da ocupação soviética. Todo mundo sabe disso, menos a redação fundamentalista da Veja. A Veja também não conta que o atentado de 11 de setembro jamais teve um autor assumido. Até hoje o que os Estados Unidos apresentaram foram presumíveis vídeos em que Bin Laden e seu grupo festejam o acontecido. Se fosse um jornalismo sério (aí é querer demais) questionaria essas fontes.
‘Poderia’, ‘seria’…
Sobre o caso, vale lembrar que a Veja, na época da queda das duas torres, descobriu até uma célula de Bin Laden em Foz do Iguaçu!
Na defesa escatológica dos Estados Unidos, a Veja trata como idiotas aqueles que dizem que os Estados Unidos têm uma proposta nazista. Ora, um país que tem bases militares em todos os continentes (somente na América do Sul são 20), tem quase 1 milhão de soldados espalhados nessas bases, já invadiu pelo menos 20 países somente no século passado certamente não pode ser considerado um exemplo de santidade. Mas para a revista não é estranho que os Estados Unidos invadam o Afeganistão procurando, feito um caubói alucinado, os pretensos autores dos ataques às duas torres de Nova York. Até hoje não acharam nada, mas já mataram mais de 3 mil civis, incluindo mulheres e crianças. Para a Veja o combate ao terrorismo justifica isso.
Depois do Afeganistão veio o Iraque. Qual a desculpa oficial para atacar o Iraque? Existência de armas de destruição em massa. Passou-se um ano e não acharam nem um traque. Era uma mentira, que a Veja se encarregou de distribuir a seus leitores. E não foi por inocência. Nenhum jornalista pode alegar que o ataque ao Iraque foi por conta de um iminente perigo de Saddam Hussein. Se disser isto está mentindo. Todos nós sabemos que o ataque era para derrubar o ex-aliado Saddam Hussein, roubar o petróleo iraquiano e manter o poder militar e econômico dos EUA na região. No mínimo. Mas, o que fez e ainda faz o nosso jornalismo de araque? Ainda insiste em reproduzir os releases do Departamento de Estado norte-americano. E todo dia, num ‘vídeo secreto’ encontrado pelos EUA, ficamos sabendo que ali poderia ser uma fábrica de armas químicas, naquelas montanhas poderia estar Bin Laden, a al-Qaida poderia estar associada aos que fazem a resistência à invasão norte-americana ao Iraque, aquele ali poderia ser Bin Laden… Em jornalismo a gente sabe que o ‘poderia’ é informação pobre, quase fofoca. Mas nessa nossa grande imprensa subserviente ‘poderia’ é notícia no horário nobre e nas páginas centrais da revista Veja.
Na mesma edição nº 1.845 a Veja se preocupa em demonstrar que o terrorismo é mais uma questão de fé do que de ideologia, e, portanto, foge ao controle da razão. Entenda-se, tratando essa gente como insana justifica-se a sua eliminação. Matar é justo.
O jornalista Jaime Klintowitz diz que o atentado em Madri ‘poderia (de novo o ‘poderia) se tratar de uma nova investida dos fanáticos da al-Qaida’, que, segundo ele, seria responsável pela derrubada das duas torres. Cita ‘um dos mais respeitados estudiosos’ de terrorismo (?), um norte-americano, e ainda insiste teologicamente em que ‘o terrorismo é o mal do século’.
Concepção de eugenia
Num certo momento ele quase trai sua gente: ‘No século passado, por ideologia e oportunismo, muitos países passaram a financiar e organizar o terrorismo internacional…’ Que países? Ah, isso ele não conta. Os Estados Unidos não poderiam ser citados como ex-aliado desses que hoje são considerados terroristas.
A Veja se preocupa em difundir o terrorismo como um mal global e sem ideologia, intenções. Define: ‘O terrorista desse início de século é o membro anônimo de um grupo com mentalidade de seita, cuja motivação é uma incógnita para o mundo exterior’. O mundo ‘exterior’, traduzo, é a civilização. ‘Incógnita’ é por conta dele.
O repórter Mario Sabino, na mesma edição, avança na tese do barbarismo versus civilização. Em certo momento ele afirma que ‘O terror mata e mutila homens e mulheres, para matar e mutilar valores e princípios humanistas’. E ficamos sabendo que a civilização ocidental (onde mais se mata por motivos fúteis) é humanista. Depois acrescenta que o terror (os bárbaros do deserto), segundo ‘os filósofos modernos’ (?), querem ‘a retribalização, a volta à tribo’. E conclui: ‘É contra a civilização, enfim que o terrorismo atenta’. Então esclarece a nós que ‘foi em favor da civilização que multidões tomaram espontaneamente as ruas (da Espanha)…’
O terrorismo seria uma coisa de alucinados perdidos no tempo. Ora, todos esses grupos terroristas declararam guerra ao poder norte-americano e agem de forma organizada. Alucinados? Ao contrário do que faz entender a Veja, eles não estão em guerra contra o Brasil, comigo, com você, caro leitor. Regra geral, eles lutam contra a tentativa nazista norte-americana de dominar o mundo pela bala e pelo mercado. Podemos discordar do método, mas é uma guerra. E numa guerra vale tudo, e numa guerra os civis e a verdade sempre são os primeiros a morrer. O ex-presidente espanhol, infelizmente, expôs seu povo a essa guerra desnecessária; uma guerra que não era do povo espanhol. Ele, junto com os autores, deveria ser julgado pelos mortos de Madri.
Mas, segundo a Veja (e a TV Globo), o que está havendo é uma luta entre a barbárie e a civilização. Diz Jaime K.: ‘Osama Bin Laden e os seus não querem destruir o mundo, é bom que se diga, mas apenas a civilização ocidental, seguindo pela conversão do restante da humanidade ao islamismo. Como deve a comunidade internacional lidar com um homem movido por tal objetivo?’ Ora, essa pergunta (ilustrada por imagens de mortos nos trens da Espanha) pede uma só resposta: matá-lo.
É evidente que há uma concepção de eugenia nessa divisão. Nós, os ocidentais, moradores da urbis, somos superiores aos homens do deserto. Aniquilá-los, portanto, é permitido.
Duas dores
Isso lembra uma história bem brasileira. Quando, em 1897, Euclides da Cunha aceitou escrever sobre o caso de Canudos, para o jornal Estado de S. Paulo, tinha uma visão parecida. Conforme o noticiário da época e a ciência dominante, Antonio Conselheiro e seu grupo se constituíam num bando de malucos que lutavam contra a civilização – por isso deveriam ser exterminados da face da Terra. E mais, Euclides tinha uma tese: o semi-árido, a caatinga (nosso ‘deserto’) é subnatureza, e ela só podia gerar uma sub-raça, o nordestino. Era a luta da civilização contra os bárbaros. Felizmente Euclides da Cunha, ao conhecer in loco esse povo do sertão, tomou juízo, corrigiu-se e disse a verdade: foi um massacre. Mas os jornalistas da Veja não conhecem Os sertões. O livro fez 100 anos, e os jornalistas de hoje ainda reproduzem a mesma visão tendenciosa e mentirosa da época. Não parecem dispostos a falar a verdade: Iraque e Afeganistão se constituíram em invasões nazistas, marcadas por um massacre sobre a população.
O problema desse jornalismo teológico é que a verdade é escamoteada e a história, jogada no lixo. A Veja gasta oito páginas e não diz qual o real motivo das invasões norte-americanas. E, o mais importante, não diz que graças a tais intervenções foram acirradas as guerras, as disputas religiosas e políticas, as matanças generalizadas. Não diz que a guerra entre Israel e os palestinos é patrocinada pelos Estados Unidos. Não diz que os Estados Unidos praticam o terrorismo de Estado e que se constituem na única nação condenada pela ONU pela prática do terrorismo. Os caubóis fizeram explodir o barril de pólvora.
No caso do Iraque, vale indagar quem são os terroristas. Os norte-americanos, que invadiram o país, mataram homens, mulheres e crianças, destruíram santuários, residências, museus…? Ou os que lutam contra essa invasão? Confesso, se isto acontece no Brasil, se me aparece um bando de ladrões e assassinos invadindo este país, com ou sem farda, sou o primeiro a lutar contra eles.
O que aconteceu na Espanha, e a Veja tenta manipular, foi o óbvio: quem se alia a alguém para um ato de guerra está sujeito a reações. E a reação foi brutal, sanguinária: morreram 200 pessoas. Para a Veja a reação é sempre terrorista. Não considera que se há uma guerra, ainda mais uma guerra imposta por um país estrangeiro que trata o povo nativo como sub-seres, a reação sempre vai ocorrer. E não me venham falar em civis inocentes. Civis inocentes morrem todo dia no Iraque e a Veja não defende com a mesma paixão com que defende os mortos de Madri – é porque os de Madri, para Veja, são superiores, fazem parte da civilização. A dor em Madri não se paga. A dor no Iraque não se conta. Os crimes estão sendo cometidos. Há uma guerra em curso e os espanhóis reagiram na hora, tirando o presidente que os colocou nessa arapuca.
Direitoso e pobre
Finalmente, há que se ver o que é terrorismo. Na semana passada, Ariel Sharon, sob orientação de George Bush, matou o líder espiritual Ahmed Yassin. Não prendeu, nem julgou – matou. Olhem o que disse o jornalista Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo (23/3/04) sobre o caso:
Se o Hamas é, entre outras coisas, um movimento terrorista, se o xeque Ahmed Yassin é seu fundador, líder e guia espiritual, assassiná-lo é uma ação legítima, certo? Errado, se a resposta tiver que ser dada por gente civilizada. Na civilização, até terroristas são primeiro, detidos, depois julgados e, se houver elementos suficientes, aí sim, são condenados, até a morte. Matá-lo como o governo Ariel Sharon o fez é o que a União Européia eufemisticamente chamou de ‘assassinato extrajudicial’. Poderia ser acrescentado que ‘assassinato extrajudicial’ é também um ato de terrorismo.
Também poder-se-ia questionar se essa caçada a Osama Bin Laden, ‘vivo ou morto’, é uma postura legal, decente, justa. Afinal, a gente sabe, a al-Qaida nunca assumiu o atentado. (Se é que houve atentado, se é que não houve um auto-atentado… mas aí é outra história). Vale questionar o fato de os EUA seqüestrarem 600 pessoas, incluindo adolescentes, e manter sob cárcere privado, em condições subumanas, num país estrangeiro (Base de Guantánamo, em Cuba). Mas ao Eixo do Bem tudo é permitido, inclusive matar os do Mal.
Essa coisa do Eixo do Mal é tão ostensiva na Veja que na edição nº 1.846 o jornalista Carlos Graieb, que costuma fazer matéria sobre as ações do MST (demonizando, claro), é transformado em crítico literário indicado para analisar o mais recente livro de José Saramago. Por quê? Porque Saramago é aliado dos sem-terra e, portanto, do Mal. O ‘crítico literário’ alerta o leitor: Saramago é comunista (vixe Maria!), e depois reduz o livro a pó.
Diante disso tudo, diante da defesa apaixonada, alucinada, insana com que a Veja defende os interesses norte-americanos (contrários aos do Brasil, inclusive), deixo duas perguntas: 1) Estará a Veja sendo patrocinada pela CIA ou pelo Departamento de Estado norte-americano? [ver remissão abaixo para trecho da entrevista de Carlos Costa, ex-diretor do FBI no Brasil, à revista Carta Capital] 2) Quanto ela estaria recebendo para fazer esse papel? Talvez esteja aí a explicação para esse jornalismo panfletário, e tão radicalmente direitoso e pobre praticado pela Veja nos últimos anos.
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Jornalista, autor do livro Trilha apaixonada das rádios comunitárias, integrante do Conselho de Acompanhamento da Baixaria na TV, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados