Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O valor da cobertura não-burocrática

Parecia o Brasil diante do ‘carrossel’ da Holanda na Copa de 1974. Durante os primeiros dias, a maior parte da imprensa procurou os efeitos econômicos da crise nos lugares de sempre, sem levar em conta que o jogo poderia ser diferente. A reação da Bolsa de Valores ao depoimento de Roberto Jefferson foi mínima. O dólar subiu, como se o mercado de câmbio cumprisse uma obrigação, e voltou a cair. Chegou a R$ 2,39 na sexta-feira (17/6).

Nessa altura, com dias de atraso, todos haviam percebido que poderia haver novidade nessa crise. O alerta foi dado pela equipe do diário Valor, a primeira a notar que havia outra história para escrever. O governo poderia fazer o oposto do habitual e responder à crise com uma política fiscal muito mais apertada e mais ambiciosa.

A crise começou com a divulgação da fita em que um chefe dos Correios embolsava um maço de dinheiro. Os primeiros efeitos aparentes foram os previsíveis. O pessoal das Bolsas mostrou nervosismo e o dólar começou a subir. Em Brasília, o governo movimentou-se para disputar as primeiras páginas com uma agenda positiva. A maior parte da agenda era conhecida. Incluía projetos em tramitação no Congresso, alguns em preparação no Executivo e, para efeito político imediato, a ‘MP do bem’, com incentivos fiscais ao investimento e à exportação.

Diante da nova agitação política, o governo poderia ampliar a MP, oferecendo benefícios também à agricultura e à construção civil. O presidente do Senado, Renan Calheiros, aproveitou a oportunidade para fazer um favor ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, propondo várias bondades fiscais que a equipe econômica dificilmente aceitaria sem resistência.

Instinto ou reflexão?

Até aí, parecia o script de sempre. O gabinete presidencial pensava em medidas vistosas para desviar as atenções da crise. O presidente do Senado propunha medidas populistas. Grandes devedores da carteira agrícola do Banco do Brasil mobilizavam médios e pequenos produtores para arrancar do governo mais uma renegociação geral das dívidas. Os prejudicados pela seca no Sul, candidatos legítimos ao refinanciamento, funcionariam como escudo e pé-de-cabra para os caloteiros tradicionais.

A equipe econômica parecia, segundo as primeiras notícias, disposta a ceder limitadamente. O superávit primário, número calculado sem o pagamento de juros, vinha ultrapassando a meta fixada para o ano – 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). Se fosse indispensável abrir o cofre, haveria alguma folga para bondades maiores que as do projeto original da ‘MP do bem’.

Apesar disso, havia algo estranho nessa história. Parecia evidente, pelo menos para quem acompanha com alguma atenção a política fiscal, que o Ministério da Fazenda vinha tentando, sem alarde, obter um superávit primário maior que o programado. A economia extra não parecia produto do acaso. Haveria disposição, mesmo diante da crise, para afrouxar a política?

Ao apresentar a ‘MP do bem’, na quarta-feira (15/6), o presidente Lula discursou de improviso, como de costume, fez as bravatas de sempre sobre o desenvolvimento econômico e de repente prometeu, de modo um tanto surpreendente, conter com severidade os gastos públicos, mesmo contrariando ‘os interesses de alguns’. O governo, insistiu o presidente, só gastará o que puder. Era preciso naquele momento, segundo Lula, passar uma ‘mensagem forte’ a respeito da política fiscal.

Essas palavras foram um tempero notável para um evento destinado principalmente a desanuviar o cenário político. O presidente, mesmo num improviso, julgou necessário conciliar o pacote de bondades com o compromisso de austeridade fiscal. Todos noticiaram essa passagem, mas sem destaque. A maior parte dos editores pareceu não atribuir grande importância àquele tempero, apesar da referência explícita à ‘mensagem forte’.

Aquelas palavras, no entanto, eram a primeira resposta do presidente à pergunta que se repetia desde o início da crise: estaria a economia brasileira blindada para resistir a um abalo político? De alguma forma, Lula parece ter percebido a solução. A blindagem dependia dele. Seria um erro permitir que a ‘MP do bem’ fosse interpretada como prelúdio de um afrouxamento fiscal. Por instinto ou reflexão, instruído ou não por algum ministro, ele mostrou a percepção do problema.

História diferente

No dia seguinte, o Valor foi o único jornal a noticiar em manchete o debate de uma nova estratégia. O presidente Lula discutia um programa voltado explicitamente para a obtenção do equilíbrio total das contas públicas. Com esse programa, seriam adotadas metas nominais, isto é, resultados finais com inclusão da conta de juros.

Um programa como esse não se realiza necessariamente num ano. Pode ser cumprido num prazo razoável, com resultados progressivos e nítidos. A idéia havia sido proposta por vários economista. Entre estes, Yoshiaki Nakano e Antônio Delfim Netto. Exige ousadia, mas pode proporcionar resultados importantes em pouco tempo, se for implantado com credibilidade. É o caminho mais curto, segundo os defensores da estratégia, para uma redução substancial dos juros.

Além disso, informou a reportagem, o governo poderá tentar, finalmente, propor a emenda constitucional necessária para diminuir ou eliminar as vinculações de verbas. Será um passo enorme para tornar o orçamento menos engessado. Esse tema vem sendo estudado há tempos, sem alarde, no Ministério da Fazenda.

Os outros jornais foram forçados a seguir o Valor. Nada garantia, naquele momento, a adoção da nova estratégia. Mas devia ter ficado evidente para todos que a discussão havia mudado e que a história da crise poderia ser bem diferente da habitual. Com a queda do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, rival do ministro da Fazenda, seria mais fácil, provavelmente, conduzir a política fiscal a um novo patamar.

Informação articulada

Mas não foi só nessa fase que o Valor tomou a dianteira. A vantagem havia começado antes, desde as primeiras pressões para adoção da agenda positiva. Depois, enquanto as demais equipes continuavam olhando para o mercado financeiro, a do Valor foi ouvir as avaliações de líderes da indústria. Isso rendeu manchete no dia 15: ‘Empresários temem que crise reforce a ortodoxia’.

No dia 17, novo salto para a frente. Enquanto os concorrentes ainda entravam na história da possível mudança fiscal, Valor anunciava que o Tesouro tinha reservas de R$ 150 bilhões para enfrentar dificuldades, podendo ficar quatro meses sem lançar novos títulos no mercado. Nessa edição, a combinação das coberturas econômica e política foi mais até mais explícita que nas anteriores, com as colunistas Cláudia Safatle e Maria Cristina Fernandes fazendo um bom exercício de contraponto.

Esse detalhe explica em boa parte a vantagem do Valor em relação aos concorrentes. Sua equipe funcionou como se estivesse cobrindo um único assunto, uma grande crise com efeitos em todos os setores. Repórteres de Economia e de Política trabalharam em conjunto e produziram, até agora, um belo resultado.

Essa articulação é muito menos visível na cobertura da maior parte da imprensa, prejudicada, provavelmente, por uma excessiva burocracia na divisão do trabalho. Convém lembrar, de vez em quando, que o leitor compra o jornal, não a seção Política ou a de Economia, e que o público inteligente espera a informação mais articulada que se possa produzir.

A especialização deve servir para aperfeiçoar o produto, não para burocratizar sua fabricação.

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Jornalista