Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O voto e o poder da mitologia

A despeito de o senador John Kerry ter sido considerado pelos americanos como o vencedor dos três debates contra o presidente George W. Bush (o primeiro e o terceiro por larga vantagem – 53% a 37% e 52% a 39% respectivamente – e o segundo dentro da margem de erro), a pesquisa de intenções de voto do Instituto Zogby de sexta-feira (15/10), feita 48 horas após o último embate entre os dois, mostrou Bush à frente por 48% a 44% dos eleitores consultados.

Esta é mais uma demonstração inequívoca de que técnicas de comunicação, propaganda eleitoral e competência retórica estão longe de ser fatores decisivos em eleições, embora muita gente continue a considerá-los assim.

O poder da mitologia parece insuperável: apesar de todos os estudos científicos feitos acerca dos reais efeitos sobre o resultado final das urnas da série de debates entre John Kennedy e Richard Nixon (em 1960) terem comprovado que eles foram desprezíveis, e de as pesquisas de opinião da época terem constatado que a vantagem de Kennedy sobre Nixon foi pequena e apenas em dois dos quatro duelos, até hoje se afirma que ele destroçou o adversário nos debates e só chegou à Casa Branca por causa do seu desempenho naqueles embates.

O resultado do pleito do próximo dia 2 de novembro, nos EUA, permanece como de prognóstico dificílimo. O mais provável é que ele será apertadíssimo, como o de 2000. Também é bastante plausível supor que Kerry venha a ter, também a exemplo de Al Gore em 2000, maior número de votos do que Bush. Mas, devido aos intrincados mecanismos do Colégio Eleitoral americano, mesmo assim a vitória poderá lhe escapar.

Se Kerry ganhar, muitos analistas vão atribuir seu sucesso aos debates. De fato, eles provavelmente ajudaram o candidato oposicionista a se firmar junto ao eleitorado (assim como os de 1960 ajudaram Kennedy), embora muitos outros elementos venham a ter maior importância que eles. (Há 44 anos, por exemplo, o fato de ter feito tempo bom em todo o país no dia da eleição – o que fez diminuir o índice de abstenção – ajudou Kennedy mais do que os debates.)

Oito ou oitenta

Eu assisti a todos os debates presidenciais americanos ao vivo (de 1976, entre Jimmy Carter e Gerald Ford, aos deste ano) e a maior parte dos quatro de 1960 em filme e vídeo. Não houve debates em 1964, 1968 e 1972. Minha avaliação é de que os de 2004 foram os mais substantivos de todos. Os eleitores que os viram tiveram realmente a oportunidade de acompanhar um confronto claro de propostas distintas sobre como o país deve ser conduzido nos quatro anos seguintes.

Isso, apesar de as regras estabelecidas num documento detalhista de 32 páginas de extensão terem tentado de todas as maneiras evitar a troca de idéias entre os candidatos. Se ocorreu o contrário foi, principalmente, por mérito dos jornalistas que conduziram os programas, em especial o primeiro – Jim Lehrer, da rede pública de TV, PBS.

Os jornalistas-mediadores conseguiram se manter fiéis às restrições do regulamento mas impor perguntas desafiadoras, provocativas, a Bush e a Kerry, que, por sua vez, se saíram – em geral – excepcionalmente bem na exposição de seus argumentos.

A vantagem de Kerry se estabeleceu porque ele conseguiu o mesmo que Kennedy em 1960 e Reagan em 1980: provar a muitos eleitores que os viam pela primeira vez na vida (esse era o caso de 40% da audiência do primeiro debate de 2004) que tinha as condições mínimas de personalidade para ocupar a Presidência.

Kerry não cometeu erros, mostrou-se seguro, saiu-se bem dos apuros propostos pelos jornalistas: foi o suficiente para muita gente inclinada a votar contra Bush se sentir mais à vontade em sufragar o seu nome. Não é pouco. Mas seria demais afirmar que sua performance frente às câmeras lhe terá dado uma eventual vitória.

O senador por Massachusetts segue, após os debates, um líder enigmático para a maioria absoluta dos americanos, que preferem, de modo geral, estilo e comportamento menos complexos, como os de George W. Bush.

Kerry pode ter tido bons motivos para ter votado em 1990 contra a invasão do Kuait (que contava com a legitimidade internacional que ele diz considerar essencial para qualquer intervenção militar americana) e a favor da invasão do Iraque em 2003 (que não tinha tal aprovação, como ele agora denuncia). Mas é muito difícil para o americano médio compreender essa e outras inúmeras contradições de sua carreira política.

O enorme número de votos que ele receberá em 2 de novembro (seguramente próximo ou superior à metade do total) se justificará menos pelas qualidades enxergadas nele do que pelos vícios identificados em Bush. Esta não é uma eleição entre Bush e Kerry, e sim entre Bush e não Bush.

‘Valores fundamentais’

Os valores em confronto em 2004 são basicamente os que justificam a grande divisão ideológica em que os americanos se viram engolfados após 11 de setembro de 2001: os ataques terroristas daquele dia e outros que posam vir a ocorrer justificam o abandono das tradições de respeito aos direitos individuais e civis fundamentais para a identidade política nacional?

No fundo, é só isso o que está em jogo em 2 de novembro próximo. Aparentemente, cerca de 50% dos americanos dispostos a ir votar acham que sim, que vale a pena abrir mão dessas noções básicas de democracia para – acham eles – garantir a segurança nacional. A outra metade acredita no contrário.

Princípios desse tipo fazem parte do núcleo central de crenças da maior parte das pessoas. São como filiação religiosa, apego à família, convicção nos efeitos benéficos da caridade etc. Ninguém abandona essa espécie de crença ou se deixa convencer pela contrária por causa de um debate televisivo ou de uma peça publicitária. Mesmo que Kerry tivesse estraçalhado Bush, ainda assim pouquíssimos eleitores que vêem no presidente o defensor dos seus valores fundamentais mudariam o seu voto.

O que os debates podem fazer – e o fizeram este ano – é cristalizar opiniões já sustentadas pelos cidadãos. Não é pouco. Mas não é crucial para o resultado final das urnas.