Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso Isabella Nardoni
é uma nova Escola Base?

O episódio da morte da menina Isabella Oliveira Nardoni, de 5 anos, que está comovendo o país, e é um desses casos policiais repletos de mistérios e que pode até ter um final surpreendente. A partir da história contada pelo pai e pela madrasta da menina à polícia, as suspeitas se voltaram justamente contra o casal, especialmente o pai: segundo o relato, ele teria subido para o apartamento com Isabella já adormecida, colocado ela na cama, trancado a porta e retornado para a garagem a fim de ajudar sua mulher a subir com os dois filhos do casal, meio-irmãos da garota. Quando enfim os dois voltaram ao apartamento com as crianças, a porta estaria aberta, a luz do quarto dos irmãos de Isabella acesa, e a rede de proteção, cortada. Por ali a menina teria sido jogada para a morte.


Uma série de indícios, porém, colocaram em xeque a versão do pai e da madrasta: havia vestígios de sangue no apartamento, Isabella parece ter morrido por asfixia e quebrou apenas um pulso na queda. Há também o relato de vizinhos que teriam ouvido a menina gritar ‘Pára, pai! Pára, pai!’. Tudo isto deu motivo para que uma delegada que acompanha o caso tenha chamado o pai de Isabella de assassino na saída do depoimento à polícia. Segundo informação publicada nos jornais, há entre os investigadores quem acredite que Isabella sequer foi jogada pela janela.


A soma dos indícios sem dúvida pode levar o público a desconfiar da história contada pelo pai e pela madrasta da criança morta, mas não pode de maneira alguma permitir que os responsáveis pela publicação das reportagens sobre o caso tratem o casal como culpados ou mesmo suspeitos em um momento tão inicial das investigações.


Condenado a priori


Quando estourou o caso da Escola Base, hoje um exemplo estudado nas faculdades sobre o que não deve ser feito em matéria de jornalismo policial, um único jornal desconfiou da história e se recusou a dar uma linha sobre a cascata. Quando o caso foi elucidado e a inocência dos donos da escola restou provada, houve quem sugerisse que o hoje extinto Diário Popular recebesse, naquele ano, o Prêmio Esso de jornalismo pela não publicação das matérias.


Tempos depois, o Diário Popular foi vendido para as Organizações Globo e mudou de nome para Diário de S.Paulo. Pelo visto, mudou também de caráter: a primeira página reproduzida abaixo, da edição de terça-feira (1/4), configura um verdadeiro crime contra o bom jornalismo. Não se trata aqui de defender o pai de Isabella – ele pode até ser culpado pela morte da filha –, mas de constatar que a capa do Diário fere os princípios mais básicos da ética jornalística e da presunção da inocência.







Um cínico pode alegar que tudo que está na manchete do jornal é verdadeiro, o Diário não veiculou informação falsa nem acusou peremptoriamente o pai de Isabella de assassinato. Sim, e provavelmente esta capa passou pelo departamento jurídico do jornal para avaliar se ela poderia ser objeto de processo. A manchete certamente também cumpriu o objetivo de fazer o jornal vender mais. Os responsáveis pela publicação sabem, também, que esta manchete destruiu a reputação do pai de Isabella. Ainda que no final das investigações o assassino seja outra pessoa, como bem observou na terça-feira (2/4) o jornalista Clóvis Rossi na Folha de S.Paulo (ver íntegra abaixo), o pai de Isabella já foi condenado pela imprensa. No caso do Diário de S.Paulo, foi condenado e exposto com requintes de crueldade.


Lição esquecida


Para o advogado do casal, a menina realmente gritou, mas foi por ajuda: teria sido algo como ‘Pára, pára! Pai, pai!’, o que também faz sentido se ele estivesse sendo atacada por uma terceira pessoa. A quem mais ela poderia recorrer senão ao pai?


O Diário de S.Paulo apostou todas as suas fichas em uma hipótese, a de que o pai de Isabella está envolvido na morte da filha. Se ele de fato estiver, o jornal tripudiou sobre um assassino. Se não estiver, acabou com a vida de um homem inocente. O bom jornalismo poderia evitar este tipo de atitude intempestiva. Ao que parece, a lição da Escola Base já começou a ser esquecida.


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Leviandade é crime


Clóvis Rossi # copyright Folha de S. Paulo, 2/04/08


Se o poder público brasileiro (no caso, o paulista) adotasse o devido rigor, puniria o delegado responsável pelo caso da menina Isabella Oliveira Nardoni, 5 anos, morta no sábado, por colocar o pai como suspeito.


No fundo, estamos diante de uma gênese idêntica ao escândalo da Escola Base, no qual a mídia foi crucificada, com toda a justiça. Mas faltou mais alguém na cruz: o delegado responsável pela investigação do caso.


Vamos rebobinar um pouco a fita e analisar as circunstâncias em que se deu a desumana crucificação dos responsáveis pela escola, apontados como abusadores de crianças.
Quem detinha, com exclusividade, todas as informações? O delegado.


Ninguém mais. Quem repassou as informações aos jornalistas, coletivamente? O delegado. Aos jornalistas, restava um de dois caminhos: duvidar ou acreditar (claro que me refiro aos jornalistas de boa-fé; os que têm índole sensacionalista não precisam acreditar ou duvidar de nada para dar vazão à índole).


Mais: se duvidassem e decidissem não publicar, seria preciso que todos tivessem idêntico comportamento. Um só que publicasse já estaria provocando o dano à reputação dos donos da escola.


Agora é um pouco a mesma coisa.


O delegado deu entrevista que a Rede Globo, pelo menos, pôs no ar (não vi outros telejornais, mas suspeito que todos o tenham feito).


Adiantaria alguma coisa se a Folha, digamos, não publicasse a acusação ao pai da menina?
Salvaria a face do jornal, mas não salvaria o principal, que é a reputação do pai.


Nem importa, no caso, se vier a se comprovar que o pai é mesmo culpado. Não cabe ao delegado, ao menos nesta fase da investigação, dizer quem é ou não suspeito.


Se o pai for de fato culpado, será punido ao fim da investigação. Se for inocente, já está punido.

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Texto originalmente publicado no blog Entrelinhas