Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cassino intocado pela imprensa

Em 1946, o médico Josué de Castro publicava a primeira edição de Geografia da Fome. Para ele, a fome que assola o planeta não é resultado de fatores naturais nem de causas raciais ou biológicas. É, na verdade, decorrência de ações do próprio homem, que governa o mundo de forma a provocar concentração de riqueza e miséria. Para ele a fome ‘é a manifestação biológica de um problema social’.

‘A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de subdesenvolvimento.A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome. A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra. Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu.’

Passados mais de 60 anos, o assunto vergonhoso insiste em voltar à tona. Para a ONU, neste momento mais de 100 milhões de pessoas, que dependem diretamente de seus programas de assistência humanitária, estão sofrendo o impacto do aumento do preço dos alimentos. De acordo com o professor Miguel A. Altieri, ‘há 33 países hoje à beira da instabilidade social devido à falta e ao preço dos alimentos’. [Miguel A. Altieri é professor na Universidade da Califórnia (Berkeley) e membro da Sociedade Científica Latino-americana de Agroecologia (SOCLA), em seu artigo: ‘A falência de um modelo – sistema alimentar na era pós-petroleira’] Segundo a FAO, há no mundo mais de 800 milhões de pessoas passando fome, dentre elas 350 milhões crianças com menos de 5 anos.

Na América Latina, que produz 30% a mais de comida do que sua população consome, 52,4 milhões de pessoas são subnutridas, das quais 9 milhões são crianças menores de 5 anos, segundo Juan Garcia Cebolla, coordenador do Programa América Latina e Caribe Sem Fome [citado no artigo ‘El debate sobre biocombustibles: entre la seguridad alimentaria y el precio del petróleo’ de Gerardo Honty – que coordena o Programa de Agrocombustiveis do Centro Latino Americano de Ecología Social (CLAES)]. Os números não são de hoje, nem de ontem, nem são reflexo das recentes altas nos preços mundiais dos alimentos. São praticamente números eternos, que perduram há séculos e que só fazem aumentar praticamente na mesma proporção que aumenta o número de gentes ao redor do globo terrestre.

De novo nesses números só há a constatação, por autoridades da ONU, de que mais gente está entrando para as estatísticas mundiais dos ‘subnutridos’, ou seja, aqueles que não comem sequer o mínimo necessário para sobreviver, devido às recentes altas dos preços dos alimentos no mercado internacional.

Alimentos e petróleo

Esse debate veio a público trazido pelos meios de comunicação de maneira, no mínimo, atrapalhada. Em um primeiro momento, os principais jornais do mundo, incluindo os jornalões brasileiros, estamparam em suas primeiras páginas as declarações de autoridades de organismos da própria ONU culpando os biocombustíveis como os vilões da história. Seriam eles os principais responsáveis pelos aumentos de preços dos alimentos, pois estariam ocupando as terras agricultáveis que antes eram destinadas a produção de cereais vitais para a alimentação humana como o milho, a soja e o arroz. Isso pode até se confirmar como uma tendência, mas no momento há outros vilões que passam praticamente despercebidos pelas páginas da imprensa. [‘Apontada pelos críticos dos biocombustíveis como uma das vilãs da disparada dos preços dos alimentos, a cana-de-açúcar tem avançado sobre áreas cultivadas com soja, milho, café e laranja na região centro-sul do país, revela estudo oficial divulgado na terça-feira pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Os dados apontam que ao menos 27% da expansão da área de cana no ano-safra 2007/08, segundo declaração dos próprios produtores, ocorreu em regiões antes ocupadas por esses culturas. O restante da expansão foi em áreas de pastagens.’ Na matéria ‘Cana avança em áreas de alimentos’, de Mauro Zanatta, no jornal Valor Econômico, 30/04/2008]

Quem chamou a atenção para o problema da fome foi a diretora do Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (WFP), Josette Sheeran. Ela afirmou em uma sessão do Parlamento Europeu, realizada em Bruxelas, no dia 6 de março, que a inflação no preço dos alimentos está gerando mais fome no mundo e que causou um rombo de 500 milhões de dólares (835 milhões de reais) no orçamento do Programa de Assistência Humanitária em 2008.

A diretora do WFP atribuiu às mudanças climáticas, à crescente demanda por alimentos na Índia e na China e ao aumento da produção de biocombustíveis os principais fatores que contribuem para o aumento do preço dos alimentos. Em seu pronunciamento, Josette Sheeran disse que os governos precisam ‘olhar de maneira mais cuidadosa para a ligação entre a aceleração na produção de biocombustíveis e o suprimento de alimentos’. Ela, porém, não especificou a que tipo de biocombustível se referia e a imprensa não se preocupou em esclarecer.

Quatro dias depois, em 10 de março, foi a vez do diretor-gerente do Banco Mundial, Graeme Wheeler, se manifestar sobre o assunto. Segundo ele ‘conseqüências devastadoras’ poderiam advir da alta simultânea do petróleo e dos preços dos alimentos no mundo em desenvolvimento.

Wheeler explicou que os aumentos no preço do petróleo encareceram as despesas com fertilizantes e transporte de alimentos, encorajando assim a produção de biocombustíveis. Mas o diretor-gerente foi mais específico ao citar que um quarto das colheitas de milho, que representam 10% da produção global, foi destinada à produção de biocombustíveis em 2007. Faltou apenas ele dizer que isso ocorreu nos Estados Unidos, onde o etanol é produzido a partir do milho e não da cana-de-açúcar, como no Brasil.

‘Os maiores preços da energia, a seca e o aumento da demanda provocaram um aumento de 75% nos preços dos alimentos básicos desde 2005’, afirmou Wheeler, que mencionou que o preço do arroz alcançou o nível mais alto em 20 anos. A imprensa, porém, não explicou a relação entre o preço dos alimentos e o preço do barril de petróleo, que também bate recordes atrás de recordes, e entre ambos e os ganhos auferidos pelos investidores nas bolsas de mercadorias.

Especulação financeira

Na quinta-feira, 27 de março, a revista Time embarcou na pauta e estampou em sua capa uma espiga de milho despindo-se das folhas transformadas em notas de dólar. A manchete de capa era: ‘The Clean Energy Myth’ (o embuste da energia limpa).

Na matéria, assinada por Michel Grunwald, o cenário descrito por uma das fontes é a Amazônia brasileira. O vaqueiro texano John Carter, casado com uma brasileira, herdeira de fazenda na Amazônia, sobrevoa a floresta em seu avião Cessna e fala do desmatamento provocado pelas pastagens e pela cultura da soja comparando a sensação que sente à de ‘testemunhar um estupro’.

O autor da reportagem fez por sua própria iniciativa a ligação entre as declarações da fonte e a produção de biocombustíveis, talvez os mesmos biocombustíveis-vilões responsabilizados pelas altas dos preços dos alimentos por Wheeler e Sheeran, adaptados convenientemente ao contexto brasileiro. Diz o jornalista da Time que:

‘Esta invasão da floresta está sendo acelerada por uma fonte inesperada: os biocombustíveis. Uma explosão na demanda por combustíveis verdes tem empurrado os preços globais das lavouras a alturas sem precedentes, que estimulam uma expansão dramática da agricultura brasileira, que está invadindo a Amazônia numa velocidade cada vez mais alarmante.’

Assim, sem maiores explicações, a matéria leva o leitor da espiga de milho da capa, matéria-prima dos biocombustíveis americanos, envolvida por notas de dólares também americanos, para os biocombustíveis brasileiros, responsáveis pela devastação da Amazônia, segundo o autor.

De passagem, a matéria da Time cita que investidores americanos como Richard Branson e George Soros, GE e BP, Ford e Shell, Cargill e o Grupo Carlyle pretendem investir 100 bilhões de dólares até 2010 em biocombustíveis. O que a matéria não fala é que parte desse investimento provavelmente seja via bolsa de mercadorias e futuros, ou seja, sem plantar um pé de milho ou destilar um litro de etanol. Se for verdade que os biocombustíveis estão causando a escassez e a alta do preço dos alimentos, esses investidores provavelmente apostarão nas duas pontas – ou seja, ganharão com a venda de biocombustíveis e com a venda de alimentos, tal como fazem hoje os que apostam no petróleo e nos alimentos.

Na seqüência da onda internacional contra os biocombustíveis, outro que se referiu à especulação financeira com o preço dos alimentos foi o relator da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, que qualificou a crise de ‘verdadeira tragédia’. O relator defendeu uma moratória de pelo menos 5 anos na produção de biocombustíveis e disse que eles são ‘um crime contra grande parte da humanidade, algo intolerável’. Sobre a especulação, disse que ‘é responsável por 30% da explosão dos preços’, especialmente a Bolsa de Valores de Chicago, onde os fundos de produtos básicos dominam 40% dos contratos, segundo informou a agência espanhola de notícias EFE.

Ziegler não pediu moratória para a especulação financeira e tampouco os jornalões estamparam em suas manchetes que ela é responsável por, pelo menos, 30% na elevação dos preços dos alimentos. Ambos preferiram condenar os biocombustíveis como principal vilão.

Dinheiro virtual

Em entrevista concedida à Folha de S.Paulo em 27/04/2008, o advogado Durval de Noronha Goyos Junior, autoridade brasileira em direito do comércio internacional, nomeado árbitro do Brasil na Organização Mundial do Comércio, declarou que ‘as turbulências no mercado imobiliário americano e no de capitais fizeram com que os recursos migrassem para o petróleo, o ouro e os produtos agrícolas’. Sem mais explicações, o assunto terminou aí.

Mas se mídia do século 21 tem dificuldade em explicar como a especulação financeira contribui para a alta do preço dos alimentos e para fome dela decorrente, temos que voltar a Josué de Castro, que em meados do século passado, no prefácio da sétima edição de seu livro Geografia da Fome, dizia:

‘Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo de produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a dura verdade é que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos. Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos conta Réclus, nos últimos trinta anos do século passado [XIX] morreram de inanição naquele país mais de vinte milhões de habitantes; só no ano de 1877 pereceram de fome cerca de quatro milhões. E, no entanto, de acordo com a sugestiva observação de Richard Temple – `enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar para o estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eram demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida´. É lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres, Roterdam e outras grandes praças européias, que tiravam grandes proventos de suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual, se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios.

Também os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não, podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras, aos outros países, em que extensão a fome participava dos destinos de seus povos. A própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas materiais, no domínio das forças da natureza, se sentiram humilhadas, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condições de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente silêncio sobre o assunto faziam-se, consciente ou inconscientemente, cúmplices dos interesses políticos que procuravam ocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas envolvidas em caráter permanente no círculo de ferro da fome.’

Guardadas as devidas proporções, mudamos de século, mas não mudamos a ética do comércio internacional de alimentos que continua tratando os alimentos como ‘fenômenos exclusivamente econômicos’. Transformados em commodities, os alimentos são negociados quase que anonimamente nas bolsas de mercadorias mundo afora. Nesse contexto, os alimentos não estão livres de ataques especulativos praticados por investidores tal como fizeram com ações de empresas, moedas ou, mais recentemente, com o mercado imobiliário. Criam verdadeiras bolhas caracterizadas pela alta artificial do preço de ações, produtos ou serviços, desvinculadas das atividades produtivas e dos fatores de produção.

Esses investidores movimentam um dinheiro virtual que deve sua existência única e exclusivamente à fé dos que dele se beneficiam e aos dogmas da economia professados por especialistas carismáticos. Nações, empresas e pessoas se subordinam a eles, incluindo aí a mídia em geral, quer seja por omissão, quer seja dando uma mãozinha na propagação dessa fé e desses dogmas, reproduzindo-os incessantemente sem nunca questioná-los.

Vontade de comer

A Índia, onde a fome matou mais de 20 milhões de pessoas no final do século 19, já estuda a possibilidade de proibir as operações de contratos futuros de alimentos. Uma proposta nesse sentido foi feita pelo ministro das Finanças, P. Chidambaram, apesar dos protestos de operadores do mercado financeiro, segundo o jornal Financial Times.

O próprio governo norte-americano parece estar preocupado em colocar um paradeiro nas especulações com as cotações das commodities ao propor uma ação conjunta da Commodity Futures Trading Commission (que fiscaliza os mercados futuros desses produtos) com a Security Exchange Commission (que regulamenta os ativos financeiros), segundo declarou José Graziano da Silva, representante regional da FAO para a América Latina e o Caribe.

No Brasil, a Bolsa de Mercadorias & Futuros comemora um crescimento de 90,2% no numero de contratos agropecuários celebrados no primeiro trimestre de 2008 em relação a igual período do ano passado. Foram 716,6 mil contratos ante 376,8 mil contratos negociados de janeiro a março de 2007. O mercado de milho registrou, nos primeiros três meses de 2008, o maior volume trimestral da história, superando o recorde anterior, 42,6 mil contratos, em 2006. Segundo o Boletim Síntese Agropecuária nº 309, publicado em 15 de abril de 2008, ‘a grande divulgação que a BM&F vem realizando em relação às commodities, a parceria com o Banco do Brasil, o apoio às corretoras e a divulgação de seus produtos nos estandes em feiras e eventos vêm contribuindo para o aumento de volumes nesse mercado’. Emanuel Zullo, gerente comercial agrícola de uma corretora, comenta ainda que a entrada de novos players na BM&F – ‘independentemente do objetivo desse investidor, se tem ou não vínculo com o agronegócio, se buscam fazer hedge [proteção do capital] ou simplesmente investir em commodities’ – contribuiu também para a elevação dos volumes.

Para esses players, que no bom português significa jogadores, as situações de escassez geralmente são as mais lucrativas – quanto pior, melhor. Sempre eles acham uma forma de tirar proveito em benefício próprio. Mesmo que com suas ‘apostas’, tecnicamente chamadas de operações financeiras, estejam aumentando a multidão de ‘famintos, demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida’.

No boletim da BM&F são fornecidas informações para que os jogadores façam suas apostas:

‘O primeiro relatório de intenção de plantio de grãos para a safra 2008/09, divulgado pelo United States Department of Agriculture (USDA), em 31 de março, avaliou que a área plantada de milho atinja 34,8 milhões de hectares nos Estados Unidos, o que representa queda de 8,1% em relação à safra passada … A situação climática desfavorável para o plantio nas principais regiões produtoras de milho no Meio-Oeste americano pode ser outro fator relevante para a escalada dos preços internacionais, assim como o aumento do consumo do grão, que resultará em estoques mais baixos. O relatório mensal de oferta e demanda, publicado em 9 de abril pelo USDA, surpreendeu os agentes de mercado ao divulgar corte de 12,1% nos estoques finais dos EUA, que passaram de 36,52 milhões de toneladas, em março, para 32,58 milhões de toneladas’.

Sobre a soja o Boletim comemora:

‘O volume de soja negociado na BM&F vem crescendo nos últimos meses. Só em março, foram totalizados 46 mil contratos, o maior volume registrado num único mês em toda a história.’

Para Norberto Freund, membro da Câmara de Soja e Milho da BM&F, o crescimento se justifica por diversos fatores:

‘A alta volatilidade de preços é decorrente da elevação da demanda mundial pela soja, com a conseqüente procura de proteção dos preços pela cadeia produtiva – em especial a demanda da China. O constrangimento na oferta mundial de trigo e as idas e vindas da crise entre governo e produtores argentinos resultando na transferência de demanda para o Brasil (Paranaguá) são fatores que muito provavelmente potencializaram o movimento da BM&F’.

Em sua análise sobre a corrida dos investidores para os alimentos, a BM&F avalia que a entrada dos fundos financeiros nos mercados significa que estão procurando alternativas para aplicações em outros mercados que não estejam ameaçados pela crise financeira, como o mercado imobiliário. Diz Norberto Freund, membro da Câmara de Soja e Milho da Bolsa:

‘Se o instrumento da BM&F não fosse adequado para se proteger da alta volatilidade, talvez o volume de contratos não subisse nessa proporção. Mas, como na visão do mercado esse instrumento provou-se adequado, pode-se dizer, como no dito popular, que se juntou a fome com a vontade de comer’.

Parece que mesmo sem querer esse especialista foi literalmente exato – à vontade de comer dos jogadores se junta a fome que provocam com a especulação sobre o preço dos alimentos.

Preço de um cafezinho

Quem explica a dinâmica desse jogo é Eduardo Felipe P. Matias em seu livro A humanidade e suas fronteiras:

‘Graças a irresistível automação do sistema financeiro, seus atores dispõem de um arsenal de instrumentos sofisticados, ideais para atuar naquilo que foi chamado de a economia de cassino.

‘De fato, o poder crescente dos especuladores reforça a impressão de que estaríamos hoje vivenciando um `capitalismo de cassino´. Segundo Susan Strange [Strange, Susan. Casino Capitalism. Oxford: Basil Blackwell, 1986], formuladora dessa idéia, o sistema financeiro ocidental está aproximando-se rapidamente de parecer nada mais que um vasto salão de jogos, no qual todos os dias jogadores em frente às telas de seus computadores em diversas partes do mundo apostariam somas exorbitantes, `tal qual apostadores em cassinos assistindo ao tilintar de uma bola prateada girando em uma roleta e pondo suas fichas no vermelho ou no preto, nos números pares ou nos números ímpares´.

Entretanto, diferentemente do que ocorre num cassino comum, onde você pode entrar ou se manter afastado dependendo de sua vontade, no cassino financeiro global todos estamos involuntariamente engajados no jogo do dia. Nele, `uma mudança cambial pode reduzir à metade o valor da safra de um fazendeiro antes que ele colha, ou fazer um exportador sair de seu negócio´. Assim, o que acontece no cassino situado nos quarteirões de escritórios dos grandes centros financeiros tende a ter conseqüências `súbitas, imprevisíveis e inevitáveis´ na vida das pessoas `de recém-formados a aposentados´’. [Matias, Eduardo Felipe Pérez. 1972 – A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 182]

Parece que para a mídia falar do funcionamento e da ética do mercado financeiro é um tabu, tal como definiu Josué de Castro com relação às causas da fome. Talvez por isso esse assunto seja tratado como de interesse privativo de especialistas e de jogadores do cassino. Esse cassino movimenta diariamente 8 trilhões de dólares, segundo estimativas do FMI. Comparado a isso, o valor do faturamento anual de uma empresa de comunicação, por exemplo, é apenas um cafezinho. No Brasil, as principais empresas do ramo têm bancos entre seus principais acionistas. Mas, para explicar a crise mundial de alimentos, o jornalismo precisa aprofundar a apuração e desafiar os tabus. Ou então, simplesmente entrar no jogo sacrificando ainda mais sua credibilidade – os alimentos são a bola da vez. Façam suas apostas.

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Jornalista, foi assessor do Comitê de Qualidade Editorial e ouvidor da Radiobrás