Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O deus do mercado cheira mal

A imprensa brasileira deu grande destaque para artigo do colunista Neil Steinberg, do jornal Sun-Times, de Chicago, publicado na quarta-feira (24/7), no qual o jornalista cita os conflitos durante manifestações ocorridas no Rio de Janeiro, para questionar por que o Comitê Olímpico Internacional escolheu o Rio, e não Chicago, para as Olimpíadas de 2016. O texto, em tom de gozação, foi reproduzido exaustivamente pelo Brasil afora, indo parar até mesmo em blogs e sites de pequenos jornais regionais.

O Sun-Times não chega a ser um jornal importante e Steinberg é um cronista do cotidiano que nunca brilhou na chamada grande imprensa americana.

Na sexta-feira (26/7), a imprensa brasileira ignorava um escândalo que ganhou destaque em publicações muito mais importantes, como o New York Times e Los Angeles Times, e segue sendo rastreado pelas edições digitais das principais mídias dos Estados Unidos e da Europa, com destaque para o Financial Times e a Economist.

Nem se pode dizer que os editores brasileiros foram surpreendidos pela notícia, porque desde maio algumas agências internacionais, como a Reuters e a Bloomberg, vêm acompanhando o caso. Trata-se do indiciamento dos dirigentes da consultoria financeira SAC, uma das mais tradicionais de Wall Street, acusada formalmente de fraude.

Apenas a Folha de S. Paulo dedicou na sexta-feira (26) algum espaço ao assunto, numa nota de duas colunas associada a reportagem sobre uma quadrilha de ucranianos e russos que roubou dados de cartões de crédito de milhões de pessoas em todo o mundo.

Apenas para comparar a grandeza das duas notícias, observe a leitora ou leitor atento que os estelionatários comuns causaram prejuízos generalizados de “centenas de milhões de dólares” durante sete anos, enquanto os responsáveis pelas operações da SAC Capital Advisors podem ser condenados a pagar US$ 10 bilhões em multas e ressarcimentos.

O New York Times observa que as autoridades federais americanas são acusadas de tratar com “luvas de pelica” os criminosos de Wall Street e diz que a SAC Advisors pode ter ludibriado a vigilância dos órgãos de fiscalização do mercado financeiro por “mais de uma década”.

Síndrome de vira-latas

É relativamente fácil explicar por que a imprensa brasileira deu tanto destaque a um colunista obscuro de um jornal regional de menor importância nos Estados Unidos, que resolveu falar mal da capacidade brasileira de organizar grandes eventos, como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas. Trata-se da síndrome de vira-latas, o conjunto de sentimentos patológicos que caracterizam uma suposta elite provinciana que se envergonha de sua nacionalidade.

Um pouco mais complicado é explicar por que um crime comum praticado pela máfia russa, tão vulgar que virou estereótipo de filme de segunda categoria na TV, ganha amplo espaço nos jornais – enquanto a comprovação de que um dos ícones do capital financeiro internacional funcionava como uma quadrilha é solenemente ignorada pela mídia tradicional.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que os paradigmas de empresas como a SAC Capital Advisors são a “bíblia” de nove entre dez colunistas de economia dos jornais e comentaristas econômicos da televisão. Então, fica constrangedor admitir que a verdadeira natureza do capital especulativo é a fraude.

Em segundo lugar, mas não menos importante, deve-se levar em conta que, fora do círculo de sagração do capital financeiro, sobram poucas justificativas para a maioria das decisões editoriais no campo da economia e até mesmo da política, uma vez que essa posição de subserviência em relação ao “deus” mercado é condição essencial para a manutenção do espaço midiático de cada um. São raros os articulistas que escapam desse perfil, e em geral são usados como exemplo de “diversidade” no pensamento hegemônico da mídia.

Em terceiro lugar, observe-se que esses valores é que fazem a imprensa cobrar do governo – qualquer governo – total liberdade para o mercado e seus sacerdotes.

As sucessivas crises produzidas no mundo nos últimos vinte anos foram causadas principalmente pela expansão sem controle do capital financeiro, porque se convencionou que o Estado é o vilão e o capital especulativo é o motor do mundo. No rastro dessa crença, consolidou-se a corrupção como modelo de negociação com agentes públicos, e ampliaram-se os poderes e o alcance do crime organizado, em todas as suas formas. No Brasil, todo governo que aceitou rezar esse “terço” acabou por fragilizar os fundamentos da economia.

As fraudes são um sintoma da putrefação desse sistema.