Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O efeito borboleta

O noticiário da quinta-feira (19/12) permite um exercício interessante sobre como o sistema de divisão do conteúdo jornalístico em cadernos e seções específicas pode dificultar a compreensão dos fatos. Por exemplo, a decisão do governo brasileiro de escolher a Suécia como fornecedora dos novos caças para a FAB, que é manchete ou destaque importante nas primeiras páginas dos jornais, se conecta à recomendação de uma comissão de consultores da Casa Branca para que o governo dos Estados Unidos reveja sua política de informações.

Outra notícia das agências internacionais dá conta de que a ONU aprovou, por consenso, uma resolução conjunta apresentada pelo Brasil e a Alemanha propondo a criação de sistemas independentes de supervisão para as redes estatais de espionagem. O texto, que recebeu as assinaturas de representantes dos 193 Estados-membros da ONU, estabelece como norma internacional o princípio da defesa da privacidade como um dos direitos humanos fundamentais, conforme proposto por diplomatas brasileiros e alemães, em resposta aos abusos do sistema de espionagem dos Estados Unidos.

Os três assuntos estão interconectados, o que obriga os jornais a fazerem referências cruzadas em suas chamadas de primeira página. Assim, a notícia sobre a escolha dos aviões suecos em lugar dos caças da Boeing e dos aviões da francesa Dassault agrega a informação de que o escândalo da espionagem americana influenciou a decisão brasileira. Por outro lado, os franceses perderam ponto quando negaram apoio ao plano de acordo para conter o projeto nuclear do Irã, apresentado conjuntamente por Brasil e Turquia em 2010.

O Washington Post, que, junto com o britânico Guardian divulgou em junho as denúncias do ex-agente de informações Edward Snowden sobre abusos da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, ao espionar autoridades de outros países, também foi um dos primeiros a anunciar a recomendação dos consultores do presidente Barack Obama para regulamentar e colocar sob controle o sistema americano de vigilância eletrônica (ver aqui, em inglês). O texto se refere a perdas econômicas e diplomáticas que ocorrem quando essas operações são reveladas.

O direito à privacidade

Juntando os temas, o que a imprensa registra nas edições de quinta-feira (19) é que não existem questões isoladas na agenda pública: como no chamado “efeito borboleta”, metáfora central da Teoria do Caos, a arrogância das grandes potências diante da iniciativa de dois países emergentes – Brasil e Turquia – em questões de segurança internacional acaba por conduzir a uma perda substancial no comércio global. Além disso, o conjunto dos fatos deixa claro que até mesmo as necessidades da segurança interna têm que se submeter às conveniências comerciais dos Estados Unidos.

Embora o texto ­que recomenda maior controle nas atividades de espionagem se refira a interesses diplomáticos e econômicos, reportagens das agências internacionais de notícias citam preocupações com a questão da privacidade, o que coloca no fórum internacional de debates a defesa dos direitos civis, que tem sido negligenciada na última década em função da obsessão das grandes potências com o problema do terrorismo.

Não se pode afirmar que o debate sobre abusos dos serviços de espionagem seja suficiente para reverter esse quadro, mas convém observar como o episódio poderá contribuir para valorizar algumas questões centrais da cidadania.

A imprensa, de modo geral e não apenas no Brasil, havia se engajado na agenda das grandes potências, ignorando questões centrais da modernidade, como a consolidação de direitos democráticos. Mesmo as decisões tomadas para superar a crise econômica iniciada em 2008 foram absorvidas pela mídia internacional com poucas críticas, sem consideração para o fato de que muitas delas provocaram sacrifícios na parte da sociedade que nada tinha a ver com as especulações que geraram a quebra do sistema financeiro.

Quando a imprensa junta as notícias e contextualiza os fatos, ajuda o público a se aproximar da realidade. Esse processo contribui para valorizar o jornalismo, que garante sua reputação como instituição de importância social justamente quando procura se abrir para a complexidade da vida contemporânea.