Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O pensamento mágico na política

O futebol, com sua mitologia e suas crenças, coloca na pauta da imprensa a expressão em inglês wishful thinking – que pode ser traduzida como “pensamento mágico”, ou, como preferem alguns filósofos, a “falácia da esperança”. Trata-se de um raciocínio supostamente lógico segundo o qual, fazendo-se certa coisa, se vai produzir um efeito determinado.

O tema é abordado por dois colunistas da Folha de S. Paulo na edição de quarta-feira (25/6). Um deles, Hélio Schwartsman, se refere ao Poder Judiciário, que muitas vezes toma como literais as palavras da lei, impondo a uma das partes tarefas que não podem ser cumpridas sem o prejuízo do todo. No caso citado por Schwartsman, trata-se das recorrentes decisões judiciais que mandam o Sistema Único de Saúde pagar todo tipo de tratamento, inclusive no exterior, seja qual for o custo, mesmo em casos de terapias cuja eficiência ainda não foi comprovada.

Diz o colunista que os juízes parecem acreditar numa interpretação literal da norma pela qual a saúde é direito de todos e dever do Estado, e, portanto, o sistema público deve garantir a todos que a ele recorrerem o acesso universal e gratuito a todo recurso disponível no mundo. Com isso, argumenta, o julgador pode estar garantindo, a quem aciona a Justiça, um direito que, por consequência, será negado a muitos, porque, na vida real, a base de custeio é finita.

O wishful thinking se manifesta na suposição de que, ao interpretar a regra literalmente, sem considerar que se trata de uma definição de princípio a ser aplicada dentro das circunstâncias reais do sistema, o juiz imagina estar assegurando que determinado paciente será atendido, quando na verdade está reduzindo a capacidade do sistema de saúde de atender ao maior número de pessoas.

Ou seja, a decisão produz o efeito contrário ao de suas intenções, pois, dando a um indivíduo o acesso a parcela muito maior das verbas, reduz as chances de se realizar o escopo do atendimento básico a muitos outros.

Torcendo e distorcendo

Outro colunista do mesmo jornal, Francisco Daudt, analisa o comportamento de torcedores que, diante das telas, repetem rituais, vestem a mesma cueca ou sentam na mesma posição por acreditarem que tais escolhas vão interferir favoravelmente no resultado do jogo.

Como “pensamento mágico”, atitudes como essas se manifestam na crença de que objetos, atos ou palavras têm o condão de mudar a realidade. Como “falácia da esperança”, expressam a convicção de que basta a fé para mudar uma relação de probabilidades absolutamente adversa. Com isso, temos também um paradigma para observar as escolhas editoriais na rotina da própria imprensa.

Veja-se, por exemplo, o noticiário sobre o vai-e-vem das alianças que se armam para as próximas eleições: há uma tendência do noticiário a destacar eventuais defecções entre os que apoiam a reeleição da presidente Dilma Rousseff, como se a “torcida” da imprensa fosse suficiente para alterar o jogo de forças da política.

A expressão “torcida”, aqui, ganha o sentido literal, já que estamos falando de torção e distorção, fenômenos presentes nas práticas cotidianas da mídia hegemônica.

O leitor ou leitora que tenha folheado distraidamente os jornais nos últimos dias é levado a pensar que as hostes governistas estão se esvaziando com a fuga de legendas para a aliança oposicionista. Na quarta-feira (25), uma reportagem de página inteira no Estado de S.Paulo afirma que “aliados ameaçam governo para aumentar capital político às vésperas de convenções”. No entanto, o gráfico que acompanha a reportagem mostra que a chapa da situação conta com exatamente o dobro do tempo das duas principais chapas concorrentes, somadas, na propaganda eleitoral pela TV. Além disso, o conjunto das notícias de política mostra que as defecções são pontuais, basicamente no âmbito dos estados, não afetando a distribuição atual de forças.

No noticiário e nas opiniões selecionadas pela mídia, há uma clara intenção de produzir um desgaste na imagem do atual governo, ressaltando erros e desentendimentos, e utilizar esse mesmo material para “demonstrar” que tais ocorrências estariam diminuindo as chances de reeleição da presidente.

A imprensa dominante não esconde suas cores, mas a realidade insiste em resistir ao pensamento mágico. Torcer e distorcer fazem a graça do futebol. No jornalismo, é ridículo.