Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O programa do caos

As notícias sobre o recuo das manifestações de rua, realizadas em junho para dar voz a reivindicações da sociedade, desalojadas pelas incursões dos bandos de predadores encapuzados que se denominam Black Bloc, se reduzem à crônica policial.

Na terça-feira (10/9), os principais jornais de circulação nacional trazem o rescaldo das prisões efetuadas no sábado em algumas capitais. O Globo conta também a história da estudante, integrante do movimento, que fugiu para Buenos Aires e pretende pedir asilo político na Argentina.

Mais interessante do que esse relato factual sobre detenções e inquéritos é o debate que corre nas redes sociais digitais sobre o significado político e social desse fenômeno do ativismo que se completa na violência. Em algum momento, essa discussão vai ganhar mais espaço na mídia tradicional, que geralmente se prende ao factual e demora a buscar uma compreensão maior dos eventos sociais.

Mas, por enquanto, o leitor ou leitora pode se distrair com os exercícios intelectuais que procuram enxergar um valor político relevante nos atos de jovens delinquentes cujo propósito parece ser apenas o vandalismo. No entanto, como já se afirmou aqui (ver “O fim da inocência nas ruas“), a organização e expansão dos blocos de encapuzados, observada em várias capitais no dia 7 de setembro, indica que o fenômeno alcança um nível mais elevado de operação e elimina qualquer traço de inocência em suas intenções. O caráter militar dessas ações desautoriza lucubrações isentas e exige um olhar mais comprometido com a defesa da democracia.

Quando a violência se organiza e não oferece justificativa além do próprio ato violento, deve-se desconfiar que seus autores estão escondendo o propósito final de suas ações. Não se pode mais afirmar que se trata de “rebeldes sem causa”, ou que os Black Bloc estão, como afirmou uma intelectual, registrando de maneira óbvia “seu inconformismo com o contrato social”, ao qual não aderem.

A glamourização do vandalismo inclui a afirmação de que seus autores lançam mão de “tecnologias derivadas da provocação artística, mais especificamente ainda de uma combinação de simbologias contraculturais de extração punk e digital”, e por aí vai.

A estética da violência

Intelectuais ganham a vida por pensar, ou seu pensar é um meio de vida, mas não se deve ignorar que há uma responsabilidade profunda na reflexão. A glamourização da violência só se justifica em casos muito específicos.

O surrealismo, que usava técnicas apuradas de produção artística como forma de confrontar a racionalidade e o utilitarismo da sociedade burguesa, ainda produzia arte. Já o fascismo e o nazismo, que brotaram no mesmo período, buscaram justificativas ideológicas na estética do surrealismo, porém seu propósito não era produzir política, mas destruir toda forma de política. O caos como ação política é quase sempre um programa de minorias que não se justifica numa democracia, ainda que deficiente.

É certo que, entre os milicianos dos Black Bloc, há jovens oriundos dos extratos menos favorecidos da população, mas os que têm recursos e tempo abundante para alimentar suas páginas nas redes sociais são mais bem representados pela jovem que pode fugir para Buenos Aires quando a lei se aproxima.

De qualquer maneira, não terá sido a primeira vez que os desfavorecidos são manipulados pela classe dominante como instrumento contra seus próprios interesses. Não há, portanto, uma justificativa social para se falar em ação política como objetivo da violência.

O que parece mais claro é que se trata de uma ação de despolitização que repudia a reflexão, daí a importância de observar o esforço de intelectuais tentando enquadrar em conceitos mais ou menos aceitáveis o que se apresenta na verdade como negação da política. E da própria reflexão.

Mesmo as tentativas de interpretação do vandalismo como manifestação estética soam como um esforço para prover de valor simbólico o que é apenas a negação de valor do social.

Se formos buscar um significado político para os Black Bloc, o exemplo histórico mais apropriado são as milícias da primeira etapa do fascismo, que também começaram atacando os símbolos do capitalismo e do liberalismo econômico, propondo a coletivização da produção e, entre outras medidas, o imposto progressivo sobre fortunas herdadas. Também na Alemanha, os nazistas combatiam o status quo e os grandes bancos, culpando-os pela depressão moral da população após a I Grande Guerra.

Nos dois casos, intelectuais e artistas se deslumbraram com a estética da violência.

Deu no que deu.