A pergunta do momento é: afinal, o que vai fazer Jeff Bezos, criador da Amazon, com o grupo do jornalão “Washington Post”, que adquiriu na semana passada por US$ 250 milhões? Será Bezos o expoente da geração de empresários da web que encontrará a solução para gerar receita no jornalismo on-line? Cacife ele tem: além de ser dono de uma fortuna de US$ 25 bilhões, Bezos é praticamente o pioneiro dos processos de e-commerce como hoje os conhecemos, tendo escrito o plano de negócios da Amazon numa viagem de carro de Nova York a Seattle em 1994. E, além de formado em computação, ainda jovem ele trabalhou em várias financeiras de Wall Street, aprendendo tudo sobre o mercado de ações. Sem falar que sua especialidade é a obsessão com o serviço para o consumidor, chave do sucesso da maior loja on-line do planeta. “Nosso foco obsessivo na experiência do cliente é nossa vantagem sobre as revendas tradicionais”, já disse Bezos numa entrevista.
Para Ken Doctor, analista de novas indústrias e autor do livro “Newsonomics”, que lista as tendências do jornalismo na era digital, Bezos pode ser o homem certo para a empreitada. Segundo ele, para começo de conversa, do ângulo dos donos do “Post” já era hora de encarar o problema financeiro. “A indústria de jornais sabe muito bem que os próximos cinco anos podem representar uma transformação digital tão brutal quanto a anterior”.
– Já do ponto de vista de Bezos… bem, poderíamos nos perguntar, porque não Mark Zuckerberg em vez dele? Porque, ao contrário de Zuckerberg, uma figura quase puramente “digital”, Bezos é conhecido como um leitor voraz de notícias e livros (daí a Amazon) – diz Doctor. – E ele traz três vantagens. 1) Construiu seus negócios (e continua a fazê-lo) sempre com vistas ao longo prazo, peitando os investidores e reinvestindo sempre o lucro no negócio para melhorá-lo. É do que os jornais precisam. 2) Sempre se concentrou na experiência do consumidor, e pode dar novas ideias de como apresentar e entregar notícias na web, em tablets e smartphones. E 3) Sabe tudo sobre gerenciar dados e como criar escala. A expectativa é que se concentre nesses pontos no “Washington Post”.
Personalização do jornal
Para Paula Chimenti, uma das coordenadoras do Centro de Estudos em Estratégias e Mídias Digitais do Coppead/UFRJ, uma das ferramentas de que a mídia tradicional ainda se vale pouco é resumida pela sigla CRM (administração do relacionamento com o consumidor, em inglês), e é bastante provável que Bezos a aplique fortemente em sua nova seara.
– O CRM, base do negócio de interação com os consumidores da Amazon de Bezos, pode ser aplicado, no setor de mídia não só aos leitores como aos anunciantes: a tecnologia pode personalizar o site e quiçá a notícia em nível individual, adaptando-os aos interesses e gostos dos leitores – diz Paula. – Os anúncios poderiam ser tratados da mesma forma e empacotados de forma pessoal.
Segundo a especialista, a mídia tradicional hoje oferece o mesmo site a todo mundo, mas isso tende a mudar. E o uso do CRM pode ser feito em qualquer mídia, qualquer plataforma, do papel ao tablet.
– Bezos aprenderá com esses novos consumidores e irá para onde eles forem. Tem chance de fazer história na combinação de mídia e tecnologia. Será algo muito interessante de acompanhar.
Já outros analistas acham que o dono da Amazon vai procurar respeitar ao máximo os meios tradicionais de produção do “Post”, sem tirar o olho do futuro digital. É o caso de Marcos Cavalcanti, coordenador do Centro de Referência em Inteligência Empresarial da Coppe/UFRJ.
– Bezos tentará integrar o digital e o papel, diminuindo a distância entre eles. Com isso, o jornal poderá ser reposicionado, ficando mais voltado para análises e reflexões profundas, enquanto o noticiário do dia fica mais e mais on-line – vaticina. – A personalização da informação digital, como vemos na Amazon com as sugestões de produtos baseadas nas buscas e compras anteriores do consumidor, será aplicada à mídia, ao jornal. E à publicidade. Hoje, os sites de jornais apresentam o mesmo banner para todo mundo. Com Bezos, isso poderá mudar, ficar mais customizado.
Seja como for, os executivos dos jornais do grupo do “Post” vão “cortar um dobrado” com Bezos, cuja personalidade difícil é conhecida no mercado. Segundo o livro “Os visionários: homens que mudaram o mundo através da tecnologia”, do jornalista Orlando Barrozo, o fundador da Amazon e criador do e-reader Kindle é tão workaholic e exigente que, devido a cobranças exageradas, perdeu 20 de seus principais executivos entre 2001 e 2003. É rigoroso com horários e cronogramas de trabalho, e chegou a implementar na empresa um programa chamado “Just do it”, que oferecia compensações financeiras a funcionários que tivessem boas ideias e as pusessem em prática mesmo sem consultar seus chefes. Para uma indústria notoriamente hierarquizada como a mídia tradicional, poderá ser árdua a adaptação.
– Mas, se Bezos puser nos jornais 1% da criatividade que pôs na Amazon, isso pode ser bom para todo mundo; afinal, ninguém ainda descobriu direito como adaptar o jornalismo corretamente à internet – aposta Barrozo.
“O limiar de uma nova era”
A expectativa por mudanças é tanta que faz o diretor do Centro Knight para o Jornalismo das Américas da Universidade do Texas, Rosental Calmon Alves, falar em “limiar de uma nova era”. Na sua opinião, Bezos é muito bem equipado para colaborar com a evolução dos jornais numa indústria mais adaptada ao novo ambiente de mídia que a revolução digital está criando.
– É um marco histórico no jornalismo americano. Pode haver muita sinergia entre a Amazon, o “Post” e a indústria como um todo. Tornar o jornal mais ousado, inovador. Imagina se ele levar técnicas da Amazon para o “Post”? Será revolucionário – diz.
Especialista em mídia, o professor lembra da grave crise enfrentada pelos jornais impressos nos EUA, provocada pela mudança no perfil do consumidor de notícias. Ao longo da última década, grande parte dos leitores migrou do papel para a internet, levando a quedas no faturamento com circulação e, consequentemente, com publicidade. O próprio valor da venda do “Post” é revelador sobre a situação atual do mercado: um dos jornais mais tradicionais do país, com 136 anos, 47 prêmios Pulitzer e uma renúncia presidencial na história vale menos que o site Huffington Post, criado em 2005 e vendido seis anos depois por US$ 315 milhões.
Para Rosental Alves, o ingresso de um empreendedor com o perfil de Bezos nessa indústria pode dar uma novo gás e trazer ideias. Além da personalização, o professor cita outras funcionalidades implementadas no varejo on-line com potencial para quebrar velhos paradigmas.
– Ele não tem medo da concorrência. Em vez de tratar outros vendedores como adversários, levou todos para dentro da Amazon. Ele vende um livro por US$ 20, mas se outra pessoa quiser vender por US$ 15, ele coloca o anúncio ao lado do dele. Num mundo jornalístico cheio de apego ao furo, à exclusividade, pode ser um paradigma a ser ultrapassado – opina.
Do papel ao Kindle
Contudo, o professor lembra que o “Post” foi comprado sem a participação da Amazon, o que levanta dúvidas sobre até onde o modelo da gigante do e-commerce pode influenciar a nova aquisição e abre espaço para especulações sobre o uso do jornal. Segundo Rosental Alves, são muitos os casos recentes de empresários que compraram jornais americanos em dificuldade para promover seus próprios negócios ou ideais políticos.
A professora Elizabeth Saad, do departamento de Jornalismo e Editoração da USP, também destaca o poder que o “Post” confere ao novo dono, mas não vê essa questão como principal. Para ela, a entrada de um personagem, sem os vícios da lógica “assinantes, circulação, publicidade”, pode trazer inovações benéficas para o jornalismo como um todo. O know how de Bezos sobre o comportamento de consumo tem potencial para criar novos modelos de negócio. Mas sobre o futuro da versão impressa do “Post”, Saad é temerosa.
– Ele comprou uma marca, não está fazendo imprensa. A versão em papel é apenas mais um produto dessa marca e ele vai manter até quando der retorno financeiro. Mas me parece certo que uma hora ele vai vender o jornal pelo Kindle.
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André Machado e Sérgio Matsuura, do Globo