Como juntar fatos velhos e mentiras e criar um escândalo
No capítulo ‘O estilo Veja de jornalismo‘ mostrei os princípios de atuação ficcional da revista e algumas análises de caso – como a material fantasiosa sobre o estouro do câmbio em 1999.
Não poucas vezes, a revista ‘criou’ notícias meramente recorrendo a um recurso que, em jornalismo, se chama vulgarmente de ‘cozidão’ – isto é, um apanhado de fatos velhos, já divulgados, mas apresentados como novidade.
Durante a campanha do ‘mensalão’ e depois dela, poucas vezes se viu tamanha quantidade de factóides criados por uma única publicação. Mais surpreendente é que cada matéria, por mais inverossímil que fosse, acaba recebendo ampla repercussão dos demais veículos da grande mídia – com a irracionalidade e falta de critérios típicos do chamado ‘efeito-manada’.
O último factóide da Veja, aquele em que aparentemente fez cair a ficha da mídia em relação ao festival de ficções da revista, envolveu diretamente o Supremo Tribunal Federal (STF).
Foi a matéria ‘A sombra do estado policial’, de Policarpo Júnior, capa da edição de 22 de agosto de 2007 (clique aqui), ainda dentro do clima conspiratório herdado da campanha eleitoral.
Como sempre, capa, manchete, submanchete, tudo recendia a conspiração:
‘Medo no Supremo
Ministros do Supremo reagem à suspeita de grampo na mais alta corte de Justiça do país.’
Ninguém mais na mídia tinha percebido qualquer sinal de ‘medo’ do Supremo, ou de generalização das escutas atingindo os ministros. Aliás, os últimos abusos contra juízes haviam partido da própria revista e do próprio autor da reportagem, no falso dossiê contra o então presidente do Superior Tribunal de Justiça Edson Vidigal – abordado no capítulo ‘O dossiê falso‘.
Não se sabia ao certo qual a intenção da matéria. Seguramente, uma tentativa canhestra de se aproximar do Supremo, utilizando a moeda de troca da qual a revista sempre usou e abusou: a visibilidade, a apologia, pegando no centro de uma das fraquezas humanas, a vaidade.
Podia ser a Abril querendo se aproximar do STF (em função da expectativa de uma eventual CPI da Abril), ou se sentindo objeto de investigação da Polícia Federal, ou algo relacionado com as pendengas entre Daniel Dantas e a PF; ou mesmo como forma de coação indireta aos membros do STF, que estavam prestes a julgar os acusados pelo ‘mensalão’.
Que era um factóide, não havia dúvida.
Na abertura, forçava um lide, dentro do estilo tatibitate-recitativo (‘sim, beira o inacreditável’) de Mario Sabino, em cima dos ‘levantamentos’ de Policarpo.
‘É a primeira vez que, sob um regime democrático, os integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que seus telefones sejam monitorados ilegalmente’.
Aliás, um dos truques de retórica mais utilizados pela revista, quando pretende esquentar um tema, é a história do ‘nunca antes’ – alvo de ironia quando dos discursos oficiais.
Seguia-se o velho estratagema das estatísticas de fontes:
‘Nas últimas semanas, VEJA ouviu sete dos onze ministros do Supremo – e cinco deles admitem publicamente a suspeita de que suas conversas são bisbilhotadas por terceiros. Pior: entre eles, três ministros não vacilam em declarar que o suspeito número 1 da bruxaria é a banda podre da Polícia Federal’.
Ia além:
‘As suspeitas de grampos telefônicos estão intoxicando a atmosfera do tribunal’.
Uma capa de revista semanal é uma celebração. É tema relevante, quente, em que se colocam os melhores quadros para apurar os dados.
Porém, de informações objetivas, a reportagem tinha o seguinte:
‘`A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes´, afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação dura e inequívoca’.
Notícia de 24 de maio de 2006, na Folha (clique aqui):
‘O ministro (Sepúlveda Pertence) diz que as suspeitas de que a polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua disposição em se aposentar. `Divulgaram uma gravação para me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não acredite´, afirma’.
A notícia era de janeiro de 2007, conforme o Terra Magazine (clique aqui).
Mas a matéria de Veja esquentava o recozido:
‘Na quinta-feira passada, o ministro Sepúlveda Pertence pediu aposentadoria antecipada e encerrou seus dezoito anos de tribunal. Poderia ter ficado até novembro, quando completa 70 anos e teria de se aposentar compulsoriamente. Muito se especulou sobre as razões de sua aposentadoria precoce. Seus adversários insinuam que a antecipação foi uma forma de fugir das sessões sobre o escândalo do mensalão, que começam nesta semana, nas quais se discutirá o destino dos quadrilheiros – entre eles o ex-ministro José Dirceu, amigo de Pertence. A mulher do ministro, Suely, em entrevista ao blog do jornalista Ricardo Noblat, disse que a saída de seu marido deve-se a problemas de saúde. O ministro, no entanto, diz que as suspeitas de que a polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua disposição em se aposentar. `Divulgaram uma gravação para me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não acredite´, afirma’.
‘Os temores de grampo telefônico com patrocínio da banda podre da PF começaram a tomar forma em setembro de 2006, em plena campanha eleitoral. Na época, o ministro Cezar Peluso queixou-se de barulhos estranhos nas suas ligações e uma empresa especializada foi chamada para uma varredura’.
A notícia era de 17 de setembro de 2006 (clique aqui).
‘O ministro Marco Aurélio Mello recebeu uma mensagem eletrônica de um remetente anônimo. O missivista informava que os telefones do ministro estavam grampeados e que policiais ofereciam as gravações em Campo Grande.O caso foi investigado, mas a Polícia Federal – ela, de novo – concluiu que a mensagem era obra de estelionatários fazendo uma denúncia falsa’.
No decorrer da semana, blogs e veículos da grande imprensa desmascararam a farsa. Praticamente todo leitor bem informado percebeu que estava diante de um ‘cozidão’.
Os dois principais fatos da reportagem: as declarações de Sepúlveda Pertence e de Marco Aurélio de Mello foram colocadas nos devidos termos pelos próprios Ministros.
O desmentido de Sepúlveda
No dia 20 de agosto de 2007, o jornalista Bob Fernandes, da Terra Magazine, ouviu o Ministro Sepúlveda Pertence (clique aqui)
– Ministro, boa tarde. Estou ligando para falar sobre a denúncia, sobre a hipótese de grampo telefônico contra o senhor, contra ministros do Supremo, publicada na Veja desta semana.
– Sim, eu falei com a revista sobre o assunto.
– O senhor foi grampeado?
– … falei sobre um assunto que aconteceu comigo (publicado neste Terra Magazine em janeiro, leia aqui).
– Sim, é um assunto que conhecemos. Mas, lhe faço uma pergunta: O senhor crê ter sido grampeado?
– Não…
– O senhor acredita ter sido grampeado, ou seus colegas terem sido grampeados?
– Não, não creio em grampos contra mim.
– Nem contra…
– Não, não tenho nenhuma razão para crer em grampo telefônico…
– Mas…
–… o que eu falei foi sobre aquele episódio… salvo aquele episódio, não tenho nada a dizer sobre este assunto.
– O ministro Marco Aurélio Mello já desmentiu, nesta segunda, a existência de grampo, disse que falava por ele… O senhor acha que houve um engano?
– … um engano.
O desmentido de Mello
No domingo do próprio fim de semana em que a capa saiu, ouvido pelas rádios, Marco Aurélio Mello desmentiu o teor da matéria.
Denúncia de grampo no STF era falsa
O Globo; CBN (clique aqui)
BRASÍLIA – A Polícia Federal afirma que era falsa a denúncia de que agentes federais estariam negociando escutas telefônicas com conversas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A investigação mostrou que os e-mails apócrifos recebidos pelo ministro Marco Aurélio de Mello, relatando o suposto grampo, faziam parte de uma vingança pessoal. Um funcionário do INSS exonerado por corrupção tentou incriminar o delegado da PF que o investigou.
Marco Aurélio recebeu o resultado da investigação do ministro da Justiça, Tarso Genro, e o encaminhou ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza
– O sujeito (funcionário do INSS) queria fustigar o delegado. Trata-se de retaliação. Foi satisfatória a apuração. Dei o episódio como suplantado – disse Marco Aurélio.
Requentando o recozido
Não adiantou. O amadorismo e a falta de sensibilidade jornalística impediram a direção de redação de ver que o modelo de criar factóides já tinha se esgotado.
Na semana seguinte, a direção de redação recorreu aos mesmos estratagemas conhecidos, para dar sobrevida à falsificação.
Na seção de cartas, só foram publicadas as cartas a favor. Mais: recorreu-se à velha barganha para garantir a continuidade do tema. Em troca de visibilidade um deputado anunciava a intenção de abrir uma CPI. O contemplado foi o ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Marcelo Itagiba, velha fonte de Lauro Jardim.
Dizia a matéria (clique aqui):
‘Os grampos telefônicos, uma das principais ferramentas de investigação policial da atualidade, vão passar por uma devassa. Na semana passada, a Câmara dos Deputados recolheu 191 assinaturas para criar a CPI dos Grampos, que pretende investigar a suspeita de que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tiveram seus telefones interceptados ilegalmente, conforme VEJA noticiou em sua edição passada. Cinco dos onze ministros do STF admitiram publicamente a suspeita de que suas conversas telefônicas podem estar sendo bisbilhotadas clandestinamente. A CPI, que terá prazo de 120 dias para concluir a investigação, deverá ser instalada já no início do próximo mês. `Quando a mais alta corte do país se sente ameaçada e intimidada, isso é uma coisa muita séria, que precisa de uma resposta urgente´, diz o deputado Marcelo Itagiba, do PMDB do Rio de Janeiro, delegado licenciado da Polícia Federal e autor do requerimento de criação da CPI’.
Era a mesma manobra do caso Edson Vidigal. Na ocasião soltou a matéria e informou que o Conselho Nacional de Justiça recebeu uma denúncia. Houve denúncia, de fato, mas depois da matéria ter sido publicada – e utilizando a própria matéria como elemento de prova. A armação era nítida, como era nítida a armação com Itagiba, para propor a CPI.
Até hoje não se sabe em que pé está a ‘resposta urgente’ da CPI.
Mas o factóide da escuta no Supremo foi um marco importante, por ter sido o primeiro absurdo da Veja que não mereceu repercussão na mídia. Até então, todos os abusos eram repercutidos, por um efeito pavloviano que fez com que o esgoto que vazava da cobertura da revista acabasse contaminando o restante da mídia.
Mas, como resultado do factóide, o Congresso abriu uma CPI do Grampo, tendo como relator o próprio Marcelo Itagiba. Enquanto isto, a proposta da CPI da Veja não saiu do papel. E, hoje em dia, são poucos os parlamentares com coragem de criticar a revista, por conta de seus métodos e chantagens. E a revista ainda conseguiu que até um ministro do STF, Joaquim Barbosa, aceitasse participar de sua campanha publicitária.
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Jornalista